Caramba, excelente texto
Ouvi pais, tios e alguns primos mais velhosque viveram estes dias no final da adolescência, que finalmente puderam usar calças de ganga à boca-de-sino, golas até aos cotovelos, contar estas mesmas coisas, apenas mudando os personagens e os cenários. Nas terras junto à fronteira, mitigava-se a fome aos rivais de sempre, contrabandeava-se café, arriscando a vida e a família a seu cargo em troca de um tiro da guarda fiscal ou dos "carabineros". Isto eram os meus avós. Os meus pais e grande parte dos meus tios tiveram a sorte de poder ir à escola e completar a escola primária, o célebre exame da quarta classe. Os bons alunos, se tivessem sorte, iam "para padres" - havia sempre um na família que era o "sacrificado" e por quem se sacrificavam. Saber ler e possuir conhecimentos era admirável, sobretudo nas aldeias longe da capital do país. A universidade era para os ricos. A revolução trouxe as passagens administrativas, o sistema de ensino iniciou a sua viagem sobressaltada, amassada e conduzida por um escaravelho tonto que não sabe se está a subir ou descer, e vai aumentando a bola de esterco...
Em 74 rebentou o paiol. Que ninguém me diga que as forças armadas não tiveram apoio incondicional dos países democráticos, e a firme ordem de que o poder não podia "cair na rua" - Portugal sempre foi geograficamente demasiado importante para ter as portas fechadas ao mundo, e havia a questão com a união soviética -, porque as portas tinham sido abertas ao capitalismo, não a foices e martelos.
Mas "a rua" estava embriagada de liberdade. Queria lá saber do comunismo e do capitalismo, o país queria os seus filhos de volta, fosse como fosse. Era preciso encher o país de gente, "traz outro amigo também" e todos haviam sofrido muitas perdas, pela guerra ou pela emigração. Era preciso pôr o país a render, em cada esquina um amigo e já não a PIDE, "não precisamos de dono", a multiplicação das cooperativas, e o mar à vista, de onde chegaram todas as maravilhas embaladas pelas canções de Abril.
quase 40 anos depois, a grande diferença é entre o ponto de partida e a chegada. As pessoas são cada vez mais manipuladas, conduzidas como um rebanho exausto rumo a um oásis, a uma qualquer terra prometida. Talvez seja um disturbio mental nacional que se agrava geração após geração, que, mais que sonhar, vive ainda o American Dream, como um disco riscado, o sulco cada vez mais profundo. Os avós de hoje são extra terrestres que contam coisas lá do "planeta deles". É como contar um filme em russo, o som até é tão parecido com o português mas não se entende uma. Os significados das coisas mudaram. Os jovens de hoje, que procuram o 1º emprego, que não encontram sequer "estágios" desempenhando tarefas da sua área profissional, nasceram na opulência dos anos 80, alguns até nasceram in-vitro. Os pais divorciaram-se, a família desagregou-se, a avó tem 50 anos e não se parece nada com uma velha - quase sempre de luto, se fossem as bisavós, a fazer o enxoval às netas, os naperons de renda, as colchas, aquelas coisinhas que hoje já se encontram nos museus na 3ª sala a seguir aos artefactos fenícios. Os pais destes jovens estão mesmo no fim da "trip", havia tanta liamba trazida da ex-colónias, colocaram bolas de espelhos nas garagens...
E a tal aurora, a tal madrugada de quem eram filhos, chegou. Estão mesmo, mesmo a acordar, e a ressaca é grande, regressados do mundo das maravilhas. Os netos da madrugada, esses, já nasceram sem conhecer a noite. Nada sabem de candeias e amanheceres, mas os seus pais não conhecem os ocasos. Quando começaram a caminhar já tinham tudo e ninguém foi obrigado a cumprir o serviço militar. Os seus pais vivem atordoados na lufa lufa de manter tudo aquilo a que se habituaram a ter, de ressaca e atordoados. Enfim, podia continuar indefinidamente, mas continuaremos os mesmos pacóvios ridicularizados por Garrett e Eça de Queirós, esperando que D. Sebastião, qual Poltergheist, saia do LCD ou do portátil ou do ecran de um qualquer Nokia, enquanto "alguém há-de faer alguma coisa".
Acredito na Paciência, na Persistência, no Pai Natal e no Poder do Fiambre!