Morreu Manuel António Pina

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Tassebem
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sexta out 19, 2012 7:30 pm

O escritor, jornalista e poeta morreu hoje, aos 68 anos. Lamento dizer que não conheço a sua obra, mas sabia que era um grande amante dos animais (em especial de gatos), tendo erguido a sua voz contra, por exemplo, a solução da Câmara do Porto para diminuir a população de animais errantes: proibir os munícipes de os alimentar, ameaçando com pesadas coimas.

Os amigos dos animais são poucos para as necessidades e é por isso que aqui quero lamentar a partida de Manuel António Pina, sobretudo na qualidade de um deles.


Aqui fica um texto da sua autoria:

"Conduzia um dia destes em direcção à Póvoa de Varzim, onde se realizavam as Correntes de Escritas, quando, não muito longe da saída que dá acesso à cidade, vi um automóvel que seguia uns duzentos metros à minha frente afrouxar, abrir-se a porta direita traseira e, de lá de dentro, um pequeno cão preto e branco, talvez um fox-terrier, ser atirado fora como um saco de lixo. O cão levantou-se em pânico, correu ainda uns metros atrás do automóvel e, depois, deixou-se ficar ali, atónito, vendo-o afastar-se. O carro que me precedia parou na berma e o condutor saiu dirigindo-se ao animal, mas este fugiu, assustado, e desapareceu num pinhal próximo. Parei igualmente e o homem virou-se para mim:

- Viu o que aconteceu?

- Vi - respondi eu.

- Filhos da p... - disse ele, abanando a cabeça como se falasse consigo mesmo.


Regressámos aos carros e retomámos viagem, eu procurando ainda o cão com os olhos para lá da berma.

No Antigo Egipto, durante o julgamento dos mortos no Além, os deuses ponderavam a verdade que existia no coração de cada um colocando no prato da balança não só o comportamento do homem em relação aos seus semelhantes mas também em relação à natureza. «O morto (...) pronunciava as palavras seguintes: "Não roubei nem forragem nem ervas da boca do gado" e ainda "Não maltratei nenhum animal". Qualquer falta de respeito para com o animal como criatura era considerada pecado. Consequentemente, a ética egípcia outorgava ao animal o direito de apresentar queixa contra o homem. [As pirâmides da 5.ª e 6.ª dinastias] exibem uma sentença que justifica os falecidos reis: "Não existe qualquer queixa contra Fulano por parte de um vivo/ Não existe qualquer queixa contra Fulano por parte de um morto/ Não existe qualquer queixa contra Fulano por parte de um ganso/ Não existe qualquer queixa contra Fulano por parte de uma vaca". O ganso e a vaca representam o reino animal.» (E. Brunner-Taut, apud E. Drewermann, Da Imortalidade dos Animais).


Infelizmente, se o cristianismo foi buscar à religião mítica egípcia conceitos como o de ressurreição e de ascensão da alma ao céu, o seu antropocentrismo, colocando o homem como razão primeira e última do próprio Universo e considerando-o, duzentos anos depois de Darwin, um ser à parte superior aos restantes seres, que existiriam tão-só em função do homem e para o servir, legitima ideologicamente todos os abusos contra os animais e a natureza em geral.

É na matriz cultural judaico-cristã que deve talvez ser procurada a ténue reprovação moral com que muitos de nós ainda encaram os maus-tratos a animais, considerados mera matéria-prima e fonte de lucro ou objecto descartável sem qualquer sentimento de culpa.

Na Póvoa, onde fui falar de poesia, a tragédia vivida pelo pobre cão atirado à auto-estrada, incapaz de compreender o que acontecera, encheu-me de compaixão e lembrou-me melancolicamente o poeta católico basco Francis Jammes, que Rilke, Proust, Claudel e Kafka admiraram: «No olhar dos animais existe uma luz profunda e suavemente triste que me inspira uma simpatia tão grande que o meu coração se abre como um hospício para acolher todo o sofrimento das criaturas. A miserável pileca que dorme debaixo da chuva nocturna, diante de um café, a cabeça caída até ao chão, um gato atropelado, um pardal ferido que procura refúgio num buraco de um muro - todos estes sofrimentos cabem para sempre no meu coração. Se não fosse o respeito humano, eu ter-me-ia ajoelhado perante tanta paciência, tantas torturas, porque eu via uma auréola em volta das cabeças desses seres dolorosos, uma verdadeira auréola, grande como o Universo, colocada pela própria mão de Deus.»"

Manuel António Pina in Notícias Magazine
«Ninguém cometeu maior erro do que aquele que nada fez, só porque podia fazer muito pouco.» Edmund Burke
Tassebem
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sexta out 19, 2012 7:32 pm

E um poema:


Os gatos

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
«Ninguém cometeu maior erro do que aquele que nada fez, só porque podia fazer muito pouco.» Edmund Burke
Floripes3
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sexta out 19, 2012 7:58 pm

Se há perda irreparável, é a deste homem bom, inteligente e poeta.

Descansa em paz, Manuel António Pina.

Daria de boa vontade os anos que me restam para que homens como este não se fossem tão depressa.
<p>Ol&aacute;, eu sou a... Floripes3 que j&aacute; foi 2. &nbsp;:mrgreen:</p>
<p>''Tome partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a v&iacute;tima. O sil&ecirc;ncio encoraja o torturador, nunca o torturado'' - Elie Wiesel</p>
<p>&nbsp;"Nas costas dos outros vemos espelhadas as nossas." - Dito popular</p>
Floripes3
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sexta out 19, 2012 8:08 pm

O pássaro da cabeça

Sou o pássaro que canta
dentro da tua cabeça,
que canta na tua garganta,
...que canta onde lhe apeteça.

Sou o pássaro que voa
dentro do teu coração
e do de qualquer pessoa
(mesmo as que julgas que não).

Sou o pássaro da imaginação
que voa até na prisão
e canta por tudo e por nada
mesmo com a boca fechada.

E esta é a canção sem razão
que não serve para mais nada
senão para ser cantada
quando os amigos se vão

e ficas de novo sozinho
na solidão que começa
apenas com o passarinho
dentro da tua cabeça.

Manuel António Pina, O Pássaro da Cabeça
<p>Ol&aacute;, eu sou a... Floripes3 que j&aacute; foi 2. &nbsp;:mrgreen:</p>
<p>''Tome partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a v&iacute;tima. O sil&ecirc;ncio encoraja o torturador, nunca o torturado'' - Elie Wiesel</p>
<p>&nbsp;"Nas costas dos outros vemos espelhadas as nossas." - Dito popular</p>
Joie2
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sexta out 19, 2012 8:08 pm

Até sempre, Manuel António Pina! Os animais ficaram mais pobres (e nós também) :( Se houver Céu, tu já lá estás.
ReginaVieira
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sábado out 20, 2012 6:25 pm

Excelente escritor e pessoa. Tive o prazer de o conhecer pessoalmente, numa reunião com outros colegas jovens escritores, veio conhecer o nosso trabalho e falar de vários assuntos connosco. Tenho muita pena que ele agora, nunca possa conhecer o nosso trabalho final... Nem queria acreditar quando vi a notícia... Tanta gente neste mundo que não faz falta NENHUMA e cá permanecem... E este tão bom senhor teve de partir... :cry: :(
Joie2
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sábado out 20, 2012 7:15 pm

Os bons partem cedo porque já não precisam de continuar por cá :) Cumpriram a sua missão :wink: Mas deixam muitas saudades :(
pesquebrados
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sábado out 20, 2012 9:33 pm

Mais um grande Homem que parte.
Ficam as saudades e a memória.
lecas
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sábado dez 01, 2012 7:10 pm

Trabalhei alguns anos o Pina. Um grande Homem. Os gatos foram muitas vezes tema de conversa.

"Os gatos", de Manuel António Pina

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos
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