São tempos novos que há cá; novidades que dariam orgulho a qualquer dos que habitam o presente. É fantástico como somos tão felizes na virtuosa cleptocracia que veio a substituir a democracia pouco futuro depois do vosso presente. Cleptocracia não é uma palavra que possamos cá usar para nomear o nosso governo (no poder com apoio do povo), é considerada até criminosa: crime de lesa ladrões, assim se chama, quero dizer, assim eu a chamo, que no vosso presente a que escrevo (meu passado) há ainda a liberdade para adornarem os grandes ladrões com adjectivos indecorosos; mas não abusem do indecoro, que, mesmo havendo, e só quase o há, no coro levarão se o fizerem, sem que os dadores da vossa porrada e os mandantes deles sejam puxados à Justiça, pois já hão-de ter reparado com certeza, que a Domvs Ivstitiae está sem clientela abastada, e os miúdos que vêm por causa de rebuçados são dos poucos que ainda espantam as moscas a quem a casa da Senhora muito viajada agora, com certeza, e só o pode ser de facto se não a tenho visto faz um bom corrimão de tempo, está arrendada. Há ainda a hipótese de se ter suicidado, coitada, que razões de sobra para lhe terem feito remorsos houve-as até mais não, que por mais que as desse e as redesse ficava ainda com de sobra para as dar e as redar outra e mais outra vez, mas sendo dessarte que a substituam por alguém mais ponderado, talvez pelo Diabo, que teve até aqui, e se for nomeado Senhor da Casa em questão terá, decerto, mais comedimento nas (in)justiças que há-de praticar que o teve a tão gloriosa Senhora. Não esquecer ainda, contudo o que já falei, que até é pouco, tendo em contagem a (in)justiça que já pôs em prática a Senhora tão ditosa e bendita aos que a sua casa visitaram, que poderá estar de baixa, apostarei eu, se de baixa estiver, que foi por esgotamento; sim, admito que Ela também sofre, aliás, é ela que sofre, coitada, agora sou eu que tenho remorsos: perdoe-me Senhora augusta todas as ofensas que atrás formulei contra a sua incorruptível balança, não estava com o juízo todo, e nunca com todo ele estive, que sou falto dele por demais. Sofre demais a Senhora e se fez injustiças, é mentira, que quem as fez foram outros usando o seu nome para as mascarar de justiças, pois tenho que admitir, Senhora, que o seu nome, de tão divino que é, apaga tudo aquilo que nem o dinheiro e um ou dois tiros à queima roupa conseguem apagar. Já pensou em abrir uma lavandaria, não em Portugal, que já tem muitas abertas com o seu nome na porta, mas num país que conheça ainda pouco da sua sua face suja? Pense nisso, que vendo-se o homem recto com torta coisa na mão, não quer nem mais honestidade e rectidão.
Pronto, feitas as pazes deixo a Senhora em paz e dirijo-me então para os meus antecessores.
Vocês em pulgas estão para saber o que tenho para vos contar, não é verdade? Eu contar-vos-ei, a seu tempo conta-vos-ei; não antes de introduzir esse conto, pois tão sublimada história merece merecidamente um prólogozinho jeitoso.
Esta episódio do vosso futuro confunde-se com cenas do pretérito a vós situado, de tão bucólico é o seu aspecto: se a fome e as barracas e todos os outros apetrechos e anexos que um governo de ladrões trás consigo cabem na definição de “bucólico”, então a cena que vos contarei é do mais puro e arcádico bucolismo jamais poetizado pelos poetas e pincelado pelos pintores deste orbe azulinho. É quase tocável - é tocável para não mentir e aconselho que o toquem para lhe tomarem a textura ficando inteirados desses tempos vindouros de argêntea e áurea pastoralidade; mas não se demorem muito no toque!, para que não apanhem pulgas e piolhos amantes do sangue qual bêbedo ama o seu vinho tinto e o joguinho da Super-Liga no café da sua terra.
Foi, para mim ( que para vocês ainda não é) agradável e detestável o tempo que estive à conversa e em que assisti a conversas na barraca daquele que, à custa de si e de outros, me fez rir e ao mesmo instante amaldiçoar o meu presente e toda a corja de desgraçados que quis e operou para que esse presente fosse.
De imediato exponho a cena que observei e que agora relato, juntamente com todos os diálogos desse episódio de graça e formosura inolvidáveis.
Dos subjugados que subjugam
I – Ab initio...
Cheguei a casa do Manuel já o Sol mergulhava no mar onde dormiria toda a noite. Os grilos cantavam não em uníssono, mas sim desorganizadamente, dando ao ar um ruído frenético e desagradável de metro em hora de ponta. Entrei, cumprimentei a mulher do Manuel e aceitando o seu convite sentei-me num banco que estava junto à janela, que fitava intensamente a rua: talvez pensava se voltaria a rever algum dia o carvalho de onde fora tirado, pois há 20 anos que foram separados e até hoje nada do seu pai soubera. Estava carunchoso de tal modo, que não me suportaria se viesse de chapéu, como tal não aconteceu, ali me susteve durante todo o tempo que nessa barraca estive. O Manuel perguntou-me se eu queria beber algo, e “algo” era a hipótese de escolha entre beber água do poço e água do poço.
- Vai um copo já que estás a oferecer – respondi eu.
No tempo que levou a ele a verter a água do pote de barro para o copo observei eu mais detalhadamente a barraca: o telhado, suportado por barrotes de madeira, à moda das vossas adegas e casões mais antigos, via-se, pois a casa não tinha tecto algum; possua várias falhas, por onde, em dias de sol forte entravam os raios de Febo, dando em objectos e pontos da casa, de modo a que, com a natural escuridão lúgubre do ainda espaçoso barracão, iluminados esses pontos específicos, pareciam as certas personagens em cena que que nos teatros a luz foca, quando quer-se realçá-las. As paredes foram erguidas pondo calhau sobre calhau colados e depois rebocados por uma argamassa fraca, à base de areia; a pintura era uma cal que já se desvanecia à força do clima que tudo muda, regenera e destrói. As janelas davam directamente para a rua, não fossem umas tábuas estalas e já um tanto esfareladas, arranjadas de modo que imitavam portadas. A porta, também de uma madeira que já assistiu a muitos passar de Eras, encaixava mal no buraco que queria tapar, sendo que por isso por baixo entravam animais de tamanho não maiores que ratazanas. Do interior não há muito para falar, visto que não tinha muito que se seja digno de ser contado; talvez valha no entanto a pena referir a mesa de pés de eucalipto e a chaminé sobreposta ao fogareiro de tijolos que para as cozeduras (quando havia algo para cozer) servia. Havia também uma divisão que até hoje suponho ser o quarto dos filhos e outro que era do Manuel e da mulher .
Passou-me então ele o copo já cheio para a mão e disse-me:
- É uma casa humilde mas acolhe-lhe bem quem vem por bem.
- Não duvido Manuel - repliquei eu.
Ficámos ambos um minuto calados: eu a fitar o vago, cá com os meus pensamentos e ele um pouco inquieto como se algo o preocupasse. Com esta suspeita perguntei:
- Que tens tu Manuel?
Deteve-se um segundo até que respondeu:
-Tenho em mente que me esqueci de algo e por mais que tente não consigo puxá-lo à memória. E sinto que é algo importante.
- Terá a ver com o jogo de hoje?
Soltou uma exclamação levantando os braços ao ar:
Ah! É isso mesmo! Falta uma hora para o início e ainda não rezei! Desgraçado!, como me pude esquecer disso?! Vou ter agora de pagar pelo meu olvido herético.
Acabou de dizer isto e foi a correr buscar um chicote que estava suspenso por um prego junto à chaminé. Tirou a camisa suja e rota, pondo-se em tronco nu.
- Ah verme – dizia ele e concomitantemente autoflagelava-se com tal violência, como se fosse outro que o estivesse a chicotear-, esqueceste-te de cumprir o que te é devido, agora leva seu animal. Já nem és digno do Estádio Celestial de Futebol Nosso Senhor! Hás-de arder no Inferno seu monstro!
Findo o acto tinha dado ao completo 100 chicotadas ao seu pessoal lombo, deixando no chão uma rubicunda poça de sangue, que continuava a ser alimentada pelo fio, nascido das feridas horríveis, não parecendo diminuir o fluxo em pouco tempo. Naquele acto nada houve que me chocasse, pois era hábito comum as autoflagelações pelo futebol, assim tal como outros tantos rituais do mais ridículo, que vistos por vós seriam tomados por coisa de loucos ou apanhados de algum canal televisivo.
Depois de ter colocado o chicote no sítio em que estava, sentou-se a recuperar fôlego, deixando-se assim alguns minutos sem soltar palavra.
- Já paguei pelas que não fiz, agora vou fazer as que me faltam, antes que não tenha tempo e as tenha, assim, de pagar outra vez à chicotada.
Dirigiu-se então para um cantinho, o mais asseado da casa, que só naquele instante eu vira, não estivesse ele envolto em panos e cobertores, protectores do pó e submerso na falta de claridade comum à casa toda, mais forte, contudo, nos cantos do casão; começou a retirá-los com muito decoro, educação e extremo cuidado, para não quebrar algo, pois o partir de tão sacros instrumentos fá-lo-ia levar o chicote outra vez ao lombo, o que, mesmo tendo ele devoção a Nosso Senhor, como um bom Futebolómano deve ter, não era algo do que, como se entende, tirasse muito prazer, mas fá-lo-ia, se as honra devidas Futebol olvidasse. Mas muito para além dos seus danos físicos (invisíveis se postos ao lado, em termo de comparação, do Sagrado nome de Nosso Senhor) o quebrar ou macular qualquer daqueles objectos divinos seria uma afronta ao Senhor da qual, mesmo que se flagelasse, se envergonharia para sempre.
Já ajoelhado, posto diante de todos os santinhos de louça quantos aqueles que pôde arranjar até ao momento: São Eusébio (o mais querido por ele), São Diego Maradona, São Edison do Nascimento, São Alfredo Di Stefano, e outros por quem daria a vida, rezou. Mas antes pôs também as mãos juntas apontadas para cima, pois à semelhança do que fez a PETA com o vegetarianismo para Jesus Cristo, o partido único que nos governa, ( a mim, e aos meus contemporâneos) o UCF União dos Cleptocratas e Futebolómanos espalhou a heresia, muito bem aguaritada pelo povo, de que Deus é Futebol, e o paraíso é um Estádio Celestial onde os seres humanos mais “simples”, depois de mortos, ascendem e são felizes para sempre ao assistirem a um jogo de futebol eterno, regado com muita violência e outras coisas que já no vosso tempo existem, mas que não têm comparação com as que se dizem que fazem no Paraíso, perdão, Estádio Celestial, ininterruptamente e com as que se fazem cá na Terra, no meu tempo, quase sem interrupção.
- A Ti Senhor :
Futebol nosso, que estás no céu,
Santificado seja o Teu nome.
Venha a nós o Teu reino.
Seja feita a Tua vontade,
Assim nos estádios como fora deles.
O jornal “A Bola” de cada dia nos dá hoje.
Perdoa as nossas ofensas
Apesar de nós não perdoarmos a quem nos tem ganho.
E Não nos deixes perder o jogo,
Mas livra-nos do empate,
Amém.
Rezou isto e mais rezou ainda; voltou a cobrir tudo com os panos, olhou-me e perguntou:
- Já está, vamos então ver o jogo.
II - Et nos inducas in tentationem
Ia para me levantar mas fiquei-me pois nesse momento batem à porta. O Manuel pôs-se ao pé da porta e perguntou:
- Quem é?
- Vinha só pedir guarida por esta noite, porque o meu carro avariou, e o reboque só chega amanhã; ora vendo aqui esta casa quis tentar a minha sorte, que sempre é melhor dormir numa casa que num carro.
Carro? Logo de Manuel se apoderou uma alegria imensurável. Carro? Ter carro no meu tempo só tinha meia dúzia de pessoas, os 98 % restantes mal tinham palha para limparem o poisadoiro, quanto mais para ter um carro, carro só tinham os mais ilustres do governo e do futebol (que eram ambos os mesmos). Manuel entrou em êxtase: seria mesmo possível que uma excelência desta altitude lhe estivesse a bater à porta, pedido-lhe guarda? Mal acabou de pensar nisto até lhe pareceu mal ter feito esperar na rua e ao frio esta individualidade semi-divina com perguntas; abriu imediatamente a porta e declarou-se já de antemão totalmente disposto a mover céu e Terra para que o alto ser do outro lado da porta se sentisse como dentro de um palácio:
- Diga-me quem você é, Excelência, para que eu tenha a honra de me curvar perante Sua Majestade, que eu não lhe consigo ver a cara pelo escuro que faz, pois digo-lhe que se dia fosse saberia logo de que divindade estou perante, porque, como manda a lei futebolística, sei os nomes e conheço todos os que estão a comandar a pátria!
Respondeu o outro:
- Sou Chimpanzé Adalberto o melhor defesa da UFL ( União Futebolística Lusitânica)
- Não, não é possível – disse Manuel paralisado. - Oh, Futebol Nosso Senhor, que me deste uma honra para a qual não estou à altura: numa noite fria fizeste um jogadgor semi-divino apontar a intenção de pedir ajuda à minha porta para que vejas se sou ou não capaz de desempenhar o meu dever mais alto; o que compete a todos, mas que poucos cumprem como deveriam: honrar devidamente a pátria, quando ela nos chama!
Derramou mais lágrimas naquele momento do que poderia derramar o rio Amazonas água para o oceano; ajoelhou-se e beijou ambas as mãos do jogador como se fora ele Futebol em pessoa; fê-lo com tanta emoção e ternura, que se estivésseis vós que agora me estais a ler a presenciar aquela cena, não poderíeis vê-la sem que não explodísseis de riso, porque estou certo que nunca vistes semelhante comportamento tão patético e ridículo, por mais revistas cor-de-rosa que tenhais lido e programas da TVI que tenhais vistos.
-Entre sem demora Vossa Mercê - disse Manuel muito meloso nas palavras, como convém a um súbdito-, que me matava se o deixasse ficar ao frio; entre que eu lhe arranjo um assento do melhor que tenho em casa.
Arranjou-lhe então a melhor cadeira da casa e forrou-a com um cobertor que servia para tapar o santuário de que já referi.
- Tome, sente-se e sente-se sem medo que a cadeira não tem caruncho e a manta é de se pôr em cima do divino, e por isso não vai fazer pior serviço estando agora o divino em cima dela.
- Obrigado pela amabilidade senhor...?
- O meu nome é Manuel, seu criado fiel, nesta e em qualquer hora que se veja aflito estando eu por perto, minha senhoria. E não tem nada que agradecer a amabilidade, que isso até é dar demasiado valor a um maltrapilho como eu; é minha obrigação servi-lo e a quem for de sua laia, Senhor. Quer comer alguma coisa, meu Senhor?
- Se puder ser, agradecia- obtemperou Chimpanzé.
- Mas qual puder ser, já lhe disse que isso não se diz! Fala como se eu fosse seu igual e lhe pedisse por isso tratamento humilde, nada de mais errado, Senhor! O seu dever é dispor o que lhe apetecer e se for até de seu proveito, humilhar o seu fiel súbdito que nada é senão o seu amparo nesta hora. É prerrogativa da sua altitude, consagrada até na lei, fazer o que entende de mim, dos meus e de todos os meus bens, que sendo poucos, já dão governo a uma família inteira se ela lhes der também governo, usando-os com parcimónia. O meu humilde, mas patriótico papel para consigo, e para com os que de si têm a igualdade de estado, que me foi ensinado em pequeno, é fazer o que puder e o que posso mas que nunca fiz, para vos apaziguar o tormento das provações, que nesta vida enredeada pelo fado, são uma constante. São nestas horas de aperto que se mostram os que realmente conseguem honrar a nação onde foram nados, e eu, Senhor, se não me for agora, por algum ardil do destino, acho, mui modesta mas também honestamente que estou à altura do desafio de assegurar que Vossa Altitude sobrevive à ominosa tarefa de dormir uma noite com o horrível tormento de saber que um dos seus Ferrari está escangalhado. Ora - disse após ter finalmente encontrado algo de comestível para oferecer ao amo -, tenho então aqui umas fatiazinhas de presunto que encontrei no lixo que devia ser de alguém do futebol, assim subido como Vossa Excelência, pois presunto só vi eu uma vez e foi quando vi num carro uma alteza assim como Vossa Mercê a deitar pela janela umas fatias de carne, que vim a saber, por esclarecimento de um amigo a quem mostrei o alimento, que era a carne esbanjada presunto; descanse que nada de bolores nem bichos sujos nele se encontram, que eu lavei-o muito bem e lavo-o outra vez se isso lhe aproveitar, antes de você o levar à boca.
- Muito bem - disse Chimpanzé Adalberto-, venha daí o alimento!.
Assim é que eu gosto- respondeu efusivamente Manuel-, Vossa Excelência a querer sem modéstias!
Deu presunto a nós: Chimpanzé e eu (que por uma questão de higiene recusei). Manuel comeu também e ràpidamente, absorto na fome que estava a matar; Chimpanzé, para meu espanto, engoliu também com gosto a carne já podre (foi espanto ao ver um homem riquíssimo, decerto habituado a comida do mais fino e requintado, comer aquele lixo de contentor, mas, tendo em conta que já comera coisas bem piores, como as enfezadas da Alta Sociedade, não me admirou nada, pensando posteriormente, aquele agrado ao comer aqueles alimentos, até porque, entre procariontes do Jet- Set e comida de lixeira, venham os urubus e escolham. ).
Comeram e a cada um (incluindo ele mesmo) deu água. Em silêncio ficámos uns minutos, eles como a escolher entre digerir e vomitar o presunto e eu a decorar as palavras que até então tinham sido trocadas para contar-vo-las hoje aqui. Repentinamente, sem aviso algum, salta Manuel da cadeira e muito espavorido olha para mim e diz:
- Aí que nos esquecemos do jogo! E agora meu Futebol, o será de nós: primeiro temos a vergonha que nos manchará o nome para sempre, e depois temos a Futebolística Inquisição que sabe logo quem falta aos prélios e toma-o logo por traidor e só põe fim à busca desse, quando lhe põe fim à vida. Ah- já em lágrimas-, que será de mim?!
- Calma- replicou Chimpanzé-, não vos acontecerá nada, pois assim que o meu problema estiver resolvido irei à cidade e falarei com a Inquisição relatado-lhes o sucedido; direi a verdade: que não pudestes ir pois tivestes em mãos a minha vida, em suma: em mãos tivestes a honra da pátria!
Os olhos lacrimosos de Manuel deram lugar a duas pérolas reluzentes de esperança, de aspecto envernizado, quando ouviu isto de seu amo.
- Não posso crer – disse Manuel ajoelhando-se aos pés de Chimpanzé, entrelaçando as mãos, e outra vez a chorar, mas desta vez de alegria- faz Vossa Divindade tal favor a este seu súbdito fiel?
-Claro, nada me custa isso- respondeu Chimpanzé.
Oh- bradou Manuel chorando outra vez de dor ao lembrar-se que é imoral os servos serem bem-tratados pelos Senhores do Futebol-, que vil eu sou! Que ser ingente e abissal gerou minha mãe em seu ventre? Nojo, tenho nojo de mim mesmo, sou o mais vil dejecto que já despejou algum boi neste mundo. Como pode (em história alguma se viu ) ser o futebolista a salvar o seu fã? Que espécie de adepto (só o mais mau e detestável) pode ter o futebolista que venera, como escravo, ao salvá-lo, quando totalmente o inverso deveria suceder? Oh, que desgraça a minha! Nada do que diz fará, meu Senhor. Entregar-me-ei amanhã no Estádio Nacional para que ao fazerem de mim exemplo, as crianças cresçam sem esquecer a minha figura infeliz, enterrado até ao pescoço sendo executado por chutamento de bolas paradas, e tirem daí material para aterrorizarem os seus filhos, e os seus filhos os seus levando-os assim, pela força do medo, a deitarem-se a horas e a cumprirem os seus deveres académicos, que o mercado de trabalho está mau até para os Seniores, quanto mais para aqueles que não vão além de Juniores.
Chimpanzé, sabendo já que se ordenasse ele acataria, por pena já daquele pobre coitado, disse com voz arrogante:
- Ouve cá, tu que te dizes meu servo, como podes tu desacatar uma ordem minha? Já te disse que falarei com a Futebolística Inquisição e o que eu disse é irrevogável, e mofino destino terá aquele que desacatar as minhas ordens, estamos entendidos, seu desobedecedor?
- Vendo que Chimpanzé falou com tanta gravidade, garbo e soberba, disse todo satisfeito e cessando já o choro:
- Já que Vossa Divindade ordena com tanta questão, eu cumprirei, claro, porque como sabe, pelo futebol e os seus, eu, bem como todos desta nação, fazemos tudo, Senhor!
-Assim seja- deu resposta Chimpanzé-, e agora desapoquenta-te que nada te acontecerá: por parte da Inquisição está descansado; agora resta a auto-penitência por teres faltado ao jogo, porque, mesmo que o tenhas perdido por mim (alta honra!) , terás de rezar muito e de te flagelares também pois, por mais altas que tenham sido as razões da tua falta, a verdade é que faltaste, e enquanto para a Inquisição basta a minha desculpa, para Futebol Nosso Senhor a tu não presença conta como não presença por mais supremas que tenham sido as razões que lhe estiveram anexas .
- Sim- retorquiu Manuel -, assim eu agirei, mas não antes de ver que Vossa Deidade sai sem agravo da minha, sua casa.
Acaba ele de dizer isto e entra no espaço onde estávamos a mulher de Manuel, que até agora tinha estado no o seu e o quarto de seu marido. Vira-se Chimpanzé para ela e imediatamente fica boquiaberto: razões para isso não lhe faltavam. Ela era do mais belo que se tinha feito no mundo até então: olhos verdes, com um castanho à mistura, cabelo preto, liso e comprido, era alta e de uma perfeição de corpo inconcebível na mente de qualquer ser humano, mesmo se esforçasse para imaginar a mais perfeita de todas as belezas femininas. Tinha um ar exótico até, mas era contudo portuguesa sem ascendência exótica; e não fosse ela um pouco lenta do entendimento e fraca de ideias que quem se nomearia de seu marido era eu.
- Mas o que é isto, meu Futebol?!
- Isto, senhor chimpanzé – disse Manuel, apresentando-a ao futebolista - é a formosa mulher com quem estou casado.
- Sou sua serva assim como meu marido e como todo o português patriota deve ser – disse ela a Chimpanzé.
- E como te chamas tu – perguntou Chimpanzé – divina portadora de tão invicta formosura?
- Chamo-me Helena – respondeu ela.
Ele, totalmente embriagado de amores por esta mulher, que há trés minutos conhecera, falou com tal profundidade que não escaparíeis ao riso se a isso assistísseis,:
- Ó Helena, filha de Zeus, és ornada da maior beleza do mundo! A ti dedica Homero os mais sonorosos versos escritos; tu que pela tua condição corpórea fizeste tombar os mais bravos aqueus e troianos do mundo! Vem até mim, beleza ofuscante, imperecível Afrodite das Eras Modernas!
- Não ouviste o que disse o Divino Chimpanzé, mulher? Chega-te a ele – disse Manuel.
- É para já – disse ela a Chimpanzé– como já disse sou sua serva e de todo o futebol assim como meu marido, por isso faça de mim o que quiser.
Ela sentou-se nas pernas dele, pôs-lhe o braço pelos ombros e ele começou a mirá-la de alto abaixo, de uma forma tão descarada que só um louco o permitiria à sua mulher; como isto é o futuro, nada de mais normal.
- Manuel, peço-te que me deixes deitar em amor com a tua mulher, que se apossou de mim um fogo quer parece que lhe deitam pólvora em cima, e só resfriarei este meu ardente desejo quando me concederes este a tua mulher que tudo queima por onde passa.
- Ó senhor, mas o que eu já lhe disse sobre o “pedir-me”? Vossa Mercê até me magoa com essa humildade. - Começa então a chorar – Nunca mais volte a pedir nada, ouviu? Exija, que já lhe disse que não se pede aos servos; bolas Senhor, não vê que é meu dever (que cumpro com sumo gosto) e de todo o povo servir até às últimas o Futebol?
Ajoelhou-se então, desfeito em lágrimas, aos pés de Chimpanzé, mas ele já nem ligou ao pranto de Manuel, tão atento que estava a devorar Helena com os olhos.
- Vamos então para o quarto- disse Helena a Chimpanzé já tão desejosa quanto ele.
III- Ab irato
Iam já Helena e Chimpanzé, ambos com os braços em volta da cintura um do outro, quando se levanta Manuel e diz esperançoso:
- Eu estive aqui a moer e a remoer a ver se dizia isto ou não, e no final após ter ficado sem nada para moer vi que até não era nada de mais este pedidozinho muito pequenino, e olhe, vou pedir: dá-me Vossa Mercê a honra de entrar com Vossa Excelência e a minha mulher, os três, para que eu tenha a honra de ouvir os sons de prazer de Vossa Excelência, que estou em crer, que são divinos, pois se divina é a sua condição, eles divinos terão de ser. Quero, muito humildemente, ter o privilégio de ser dos poucos, ou mesmo o único, a ouvir tão sublimes melodias que asseguro, antes sequer de os ouvir, que são mais profundas até que as composições de Beethoven e Bach? Fico se quiser debaixo da cama se não gostar que o vejam (que já nem pedi isso, pelo atrevimento que é); basta-me o som que será decerto música para os meus ouvidos.
Chimpanzé hesitou um instante e respondeu:
- Tudo bem. Mas nada de espreitar, que não gosto de mirones!
- Como disse, nem eu o esperava; e com os seus sons que antevejo serem de rouxinol já muito dou graças a Futebol por uma honra de tão elevado tamanho, que mais ninguém ainda teve, estou em crer.
- Vá, então entremos - disse Chimpanzé.
Entraram. (Esta cena não a vi eu, que não tenho pinta de voyeur, mas o que conto, foi-me por Manuel contado posteriormente. ) Manuel pôs-se por baixo da cama (um monte de sucata) e esperou, ansioso, que os dois amantes se deitassem. Por fim, a mulher dele e Chimpanzé deitaram-se e o peso de ambos fez baixar o colchão, mas não de modo a que Manuel ficasse apertado – ainda sobrava altura.
Começaram então o acasalamento: zurros para aqui, balidos para ali, todos os animais deste mundo imitaram aqueles dois; Manuel deleitava-se a ouvir o seu Senhor, que tão bem, como me disse ele, chilreava de prazer. O colchão subia e descia e Manuel estava no céu; conseguira o que muitos desejavam: ter a honra máxima de ser o amparo de um Senhor da bola, agradá-lo com os seus bens e tratá-lo com mais estima do que os seus. E mais o agradava que chimpanzé tivesse gostado tanto da sua mulher a ponto de a querer possuir; e ficou mais alegre ao pensar na hipótese de Chimpanzé a querer levar com ele: ai que orgulho ser marido de uma mulher que tem por amante um futebolista! Chorou de alegria aquele patriota de pensar nisso, e lágrimas não foi só o que largou.
- Que barulho é esse Manuel – perguntou Chimpanzé que interrompera o coito devido a um barulho que viera debaixo da cama - ?
- Ai, perdoe-me Senhor que agora é a época do feijão e a tripa é fraca – disse Manuel já a chorar por ter interrompido à custa de um *** seu, aquela Nona sinfonia de Beethoven.
Não precisas de chorar - disse Chimpanzé – acontece a todos esse tipo de descuido, mas vê se te conténs ou ponho-te fora daqui.
- Sim, meu senhor, não volto abrir o escape – obtemperou muito educadamente Manuel.
Acabaram. Manuel saiu do seu esconderijo e chegando-se ao pé de seu amo já de calças vestidas e a mexer no cabelo, este disse-lhe:
- Manuel, o meu cabelo está desajeitado?
Não Senhor – respondeu Manuel -, está como quando você aqui entrou: um perfeito manto de porco-espinho.
- Óptimo – disse Chimpanzé - . Deixa-me dizer-te, Manuel, que a tua mulher é muito boa nas suas competências amorosas.
- Ah, ainda bem que gostou – disse Manuel, alegre e com ar submisso - , Senhor; é para isso que cá estamos: servir Vossa Mercê .
Saíram, e entraram na divisão onde estavam anteriormente e onde eu ainda permanecia, a registar a informação que recolhera, para que vós tivésseis o gosto de saber o vosso glorioso futuro. Entra então o filho mais novo de Manuel. Uma criança suja, raquítica e apática é a descrição que posso fazer daquele pobre ser engelhado e temeroso.
- Compraste então o jornal, que eu te pedi? O que é que veio hoje – Disse Manuel referindo-se às miniatura em louça dos grandes futebolista de todos os tempos, que vinham diàriamente com o jornal desportivo - ?
O miúdo todo amedrontado respondeu:
- Não pai, comprei um pão que me doía a barriga de fome.
Manuel ouviu isto e foi sobre-humano o que se sucede. Cerrou os punhos, todos os músculos do corpo ficaram tensos, os olhos vermelhos de uma fúria inumana, e disse:
- Meu animal! Que fizeste tu?! Sabes o que te vou fazer, seu inimigo da pátria – disse furibundo, completamente raivoso e colérico?
E dar-lhe-ia uma bordoada de rachar pedra não fosse Chimpanzé compadecer-se e levá-l nos braços , impedindo que Manuel fosse de encontro a ele. Manuel muito chocado com esta atitude de Chimpanzé disse:
- Não acredito no que estou vendo! Salvou Vossa Mercê um traidor?! Como o pôde fazer?! Reparou no crime que esse cão cometeu?! Devolva-me já esse animal para que eu o castigue como manda a Lei Futebolística!
Chimpanzé continuou envolvendo a o filho de Manuel em seus braços e disse:
- Não permitirei que faças mal ao teu filho Manuel. Às vezes considero que esta sociedade exagera um pouquinho...
Ouviu-lhe Manuel e à cólera juntou-se desapontamento extremo.
- Como pode Vossa Excelência dizer uma coisa dessas!? Oh, tormenta! Olha, Futebol Nosso Senhor – disse chorando compulsivamente,apontando a cabeça para o tecto e o braço para o par Chimpanzé e Eusébio (o filho) -, a tragédia que estou perante. Esta povo que tanto lutou para que a democracia fosse abolida, instaurando um governo de Futebolómanos, fazendo tudo por tudo para que tivessem ordenados superiores àqueles que os maiores clubes pagam aos seus jogadores, e agora você, que mais que ninguém deveria apoiar esta situação, diz uma coisa destas?!
De repente muda de pensamentos, não considerando mais seu amo como uma divindade a amparar, mas sim, tal como seu filho, um traidor a abater.
- Muito bem ordinários! Ides pagar a vossa traição a peso de chumbo!
Dizia isto e vai a correr ao santuário buscar uma espingarda que era usada em ocasiões especiais, tais como abater adeptos de equipas adversárias e para assassinar traidores de igual índole àquela que eram portadores seu filho mais novo e Chimpanzé.
Viu isto Chimpanzé e, julgando ainda ter autoridade sobre Manuel, disse a Eusébio, a esta hora já banhado em lágrimas, e não gritava pois não tinha força para tal:
- Não te preocupes pequeno, que o teu pai não se atreverá a fazer-nos mal.
Convencido disso disse:
- Ordeno-te Manuel que pares imediatamente, pois eu tenho estatuto divino e a minha morte, ou arranhão sequer, originados por plebeus, é pago com a morte ou com a expulsão do clube de que são sócios!
De nada valeu esta ordem, pois Manuel estava decidido a eliminar os infiéis, mesmo que isso lhe custasse a vida. Chimpanzé ainda estava convencido que Manuel não lhe tocaria nem com o cano da espingarda, e esteve-o até ao fim, bradando e gritando ameaça atrás de ameaça, como se Manuel fosse um cão. PUM, PUM, vomitou a espingarda a pólvora e o metal que mata pela rapidez.
- Pronto- disse Manuel com ar de missão cumprida e salpicado de sangue– acabei com estes traidores, acabei com um insulto para a pátria e seus amantes.
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Futuro promissor, não?
