"Se bem me recordo, o meu abandono já conta com todas as estações do ano, não posso precisar, mas as minhas rastas espelham o meu abandono.
Fui abandonada, só não sei dizer ao certo em que data, em que estação do ano, não é que interesse saber a data certa, pois no abandono, os meses, semanas, dias, horas, e mesmo segundos, são como um relógio gasto e sem bateria,.vai falhando..mas o que importa? o tempo é ocupado na dura batalha pela sobrevivência.
O Outono...será que foi nesta estação do ano que fui abandonada? Talvez sim, talvez não, apenas sei, senti no meu coração, o frio gélido do abandono, tal como o outono anuncia o inverno
O inverno é daquelas estações que custa muito na rua.. o frio, a fome, e a indiferença de todos aqueles que caminham em passo apressado, que só querem chegar ao conforto dos seus lares e sentirem o calor de uma lareira. Sento-me.. e nem o frio que faz doer os meus ossos me move daquela visão que me aquece, quando o meu coração entra por aquela janela fechada que espreito tão atentamente, e vejo um amiguinho como eu, a ser afagado no seu cobertor bem quentinho até que as luzes se apagam...e aí acordo para a cruel das realidades... volto a caminhar pois já nem a alma posso mais aquecer e..o frio e fome não ajudam nada.
Durmo, no mais escondido dos cantos das ruas, pois nem os sem-abrigo estão livres de sofrerem os perigos da noite mas.. a maior das maldades é a fome, se ao menos não existisse fome, se não fosse preciso comer.
Não tenho petiscos, mas o melhor restaurante aberto a altas horas da noite..o caixote do lixo...
O dia, aquela claridade da indiferença..caminho, bem olho para todas aquelas pessoas apressadas que passam, grito num lamento mudo “olhem para mim, eu estou aqui e prometo ser tua amiga”..mas nada, ninguém, mas ninguém me ouve, apenas eu ouço os passos apressados.
A primavera, bonita estação que sorri a todos, mas ninguém olha para mim, para o meu corpito já magro e cansado de tanto caminhar... ninguém olha para os meus olhos já tão cansados de olhar e ninguém ver...ninguém ouve o meu lamento mudo...e lá continuo a caminhar no vazio da esperança..deixei de acreditar... olhar para os donos dos passos apressados... acreditar na primavera.
A minha pele arde tanto, deve ser do calor ou talvez das mordidelas das pulgas,será por estar tão suja?
Talvez por cheirar tão mal é que ninguém olha para mim..
Verão...perdi o a vontade de caminhar..está tanto calor e custa a respirar,mas o pior é que os caixotes de lixo estão agora sempre ocupados, cada vez somos mais, os abandonados... eu já nem me aproximo, é perigoso...a fome é muita..mais vale caminhar ainda que de barriga vazia custe muito.
A sede obriga-me a caminhar mais devagar, a minha boca seca, tenho tanto calor com tanto pelo...se ao menos alguém olhasse para mim., ninguém olha para mim.
Caminho, mas mais lentamente, se não fosse o calor..mas tenho de caminhar..
Desisto..ninguém olha para mim, todos se afastam de mim..tenho fome e sede, já nem quero olhar para mais nenhuma janela e fazer de conta que comi muito e estou de barriga cheia.
Entrei num local sossegado...encontrei um refúgio, debaixo de um carro..assim ninguém olha para mim e eu não acalento esperança de olhar para ninguém..desisto.
Oferecem-me comida e àgua.. não saio debaixo do carro, estranha oferta..é melhor não sair! sou educada e agradeço..ouvi dizer que sou simpática, pena não ter um lar.
Segui viagem. longa e a meio do caminho entro num segundo carro..e disseram-me que estava em Lisboa.
Chego e entro numa casa, faz-me lembrar uma daquelas que tanto olhava naqueles invernos gelados, só que sempre tinha olhado do lado de fora..mas agora entro mesmo.
Uma mão que me afaga e tenta livar-me do meu casaco de pelo que tanto me sufoca.....as minhas costas já sentem um pouco de ar.
Um dia complicado pois ouço dizer que o meu casaco de “rastas do abandono” esconde muitos problemas
Não sei o que me aconteceu..mas deixei de ver , ouvir e sentir...mas quando acordei senti um alívio tão grande..senti o ar a acariciar a minha pele, a minha pele em chagas vivas..agora já percebia a razão de tanta comichão, de tanta dor no tempo que passei a caminhar na rua, mas até a dor deixei de sentir, e dormi finalmente numa das caminhas que tanto vi do lado de fora da janela....
Sonhei...fossem todas as noites assim, com uma caminha, com uma mão a acariciar até eu adormecer...mas não me lamento pois... finalmente olharam para mim."
Shami
A Shami foi ADOPTADA
Esta é a história da Shami, uma linda cadelinha que foi abandonada nas ruas do Porto mas esta história triste acabou, finalmente acabou, pois olharam para a Shami e assim a Shami hoje já dorme numa casa quentinha e a sua caminha é no quarto dos donos, embora muito provavelmente a cama dos donos passe a ser a dela.
Alguém se apaixonou pela Shami, visitou-a e desde esse dia manteve-se o contacto pois a Shami precisava de ser esterilizada antes de partir para uma nova vida.
A Shami foi esterilizada e a paixão manteve-se e hoje foi o grande dia para a Shami..o dia da sua adopção.
Fui a casa da família da Shami e gostei muito, já gostava muito da senhora, ficava conhecer o marido, pois já conhecia o filho.
São uma família muito responsável e afectiva e a sua adopção foi ponderada pois como me disseram " A Shami é o novo membro da nossa família e são decisões ponderadas, pois não é por um dia, é para uma vida!"
A Shami ía um pouco a tremer mas logo foi aliciada por uns biscoitos, conheceu o seu amiguito, um lindissimo gato branco pois ela´é muito sociável e meiga e assim não houve problemas, aliás, o gato, também muito meigo, só a desafiava para brincar.
Antes de a deixar deliciar-se no seu sonho de uma nova família, vi a Shami saltar para o sofá e lá ficou a ser mimada pelos seus donos.
Vamos a ver se corre tudo bem mas estou a torcer que sim pois a Shami merece tanto esta família, esperemos é que não ladre pois está num apartamento, mas vou falando com a senhora que acredita que vai correr tudo bem.
Gostei imenso desta família, pela persistência em adoptarem a Shami, pelos contactos que foram efectuando a saber dela até ser esterilizada, pelo forma como planearam tudo, pela afectividade que manifestam para com ela, por tudo o que foi dito.
Olhei para trás e vi uma Shami a abanar a sua caudita, finalmente a Shami tem o seu sonho realizado..uma caminha quente, uma casinha, uma família.
A todos que ajudaram a Shami, acreditaram nela, um meu muito muito obrigado e não posso deixar de elogiar a Vive pela forma como se dedicou à Shami. Fica aqui o recado da senhora para a Vive " venha-a visitar!
Tocou-me muito esta adopção..a cadelinha do Porto que vivia debaixo de um carro....
Logo que possa serão divulgadas as fotos deste dia tão especial na vida da Shami.
Taro
Como em qualquer adopção, caso haja algum problema, serei logo contactada embora esta semana eu também vá contactando.
Por decisão dos donos, a Shami irá continuar a ser seguida pelo médico que a esterilizou.
PS : a senhora das botas vermelhas ( o capuchinho vermelho) é hoje a sua dona.