Recriando a História da Domesticação:
A Quinta das Raposas de Belyaev
Um animal manso não é um animal doméstico. Se qualquer um de nós capturar, digamos, uma cria de leão, lobo ou urso na natureza, e o levarmos para criá-lo connosco, muito provavelmente teremos em casa, depois de alguns anos, um leão, lobo ou urso domesticado, não doméstico. Este já estará mais ou menos adaptado à nossa presença e à de alguns outros membros da família. Mas aquele animal não é doméstico: entre outras coisas, porque se ele se acasalar e tiver crias, essas crias serão ariscas como os animais selvagens – a não ser que você trate deles desde pequenos novamente. Animais silvestres podem chegar a tolerar algum contacto humano. Mas com certeza vai existir uma diferença muito grande entre o comportamento de um lince e o de um gato, no que se refere à facilidade de interacção connosco.
Isto porque a domesticação é um processo que leva milhares de anos para ocorrer. Animais domésticos nascem construtivamente sem medo de humanos. Ou, por outras palavras, são biologicamente mais afáveis para os humanos do que os seus parentes selvagens. Como veremos a seguir, um animal doméstico não é apenas mais "tratável" do que um selvagem. Todos eles (cães, porcos, cavalos, bois, ovelhas, etc.) têm características físicas e biológicas marcadamente diferentes das dos seus antepassados de vida livre.
A domesticação de animais é um campo que muito tem intrigado os cientistas do comportamento animal. Quando, como e por que os seres humanos decidiram domesticar um animal? Ou, segundo alguns crêem, será que os animais selvagens "se domesticaram" ao se adaptarem à vida perto do homem, e que apenas a seleção natural foi agindo sobre eles?
Um geneticista russo, Dmitry K. Belyaev, passou toda a vida estudando a domesticação animal. Sua hipótese era a de que o factor determinante para um animal selvagem ser aceite inicialmente como companhia para o homem, não era tanto o seu tamanho ou a sua capacidade reprodutiva, mas sim a sua domesticabilidade, a facilidade com a qual um dado indivíduo da espécie permitia a aproximação humana. Indivíduos tolerantes seriam mantidos e cruzados entre si. Os intolerantes teriam sido descartados ou não considerados para a perpetuação da raça.
É mais fácil de entender se considerarmos o exemplo típico de animal doméstico, o cão. Seus antepassados eram lobos. De acordo com Belyaev, os primeiros indivíduos dessa espécie que foram criados por humanos foram-no por causa das suas boas características comportamentais. Ao longo de milhares de anos, essa descendência "bem comportada" foi sendo cruzada entre si, até que finalmente os animais já não apresentassem traços do comportamento arisco selvagem. Nesse "momento" surgiu o lobo doméstico, ou o cão.
Belyaev testou a sua hipótese com um projecto que abarcou toda a sua vida: tentar "comprimir" esse processo multimilenar de selecção artificial nalgumas décadas apenas, usando para isso um animal muito parecido com os lobos e os cães, mas que nunca antes tinha sido domesticado: a raposa.
Na cidade de Novosibirsk, em plena Sibéria, funciona há quase 40 anos uma enorme Quinta de criação de raposas. Em países do hemisfério norte, criam-se comercialmente as raposas para se comercializar suas peles. Mas nesta fazenda concreta, o que interessa para os cientistas não é a qualidade da pele, mas a domesticabilidade, a "afabilidade" das raposas.
O critério para permitir às raposas se perpetuarem, desde o início, foi muito simples. Desde pequenas, os tratadores tentam acariciá-las e interagir com elas. De acordo com a reação dos animais, eles são divididos em 3 subgrupos:
Raposas Classe III Fogem do tratador ou tentam morder-lhe a mão quando tocadas.
Raposas Classe II Permitem que sejam tocadas, porém não apresentam sinais emotivos à vista do tratador.
Raposas Classe I São amigáveis, balançam a cauda e ganem quando o tratador está presente.
Depois da sexta geração de raposas, foi necessário criar uma outra categoria, ainda mais restrita:
Raposas Classe IE São a "elite domesticada": procuram activamente atrair a atenção do tratador, lambendo-lhe as mãos e agindo em tudo como os cães.
Na décima geração, 18% das crias pertenciam à Classe IE. Na vigésima geração, a cifra subiu para 35%. Hoje, 40 anos e 45000 raposas depois de Belyaev ter começado os seus trabalhos, 70 a 80% das raposas são Classe IE.
Juntamente com essas alterações drásticas de comportamento, os cientistas que continuaram os trabalhos de Belyaev foram notando o surgimento de várias características físicas típicas de animais domésticos: despigmentação de grandes áreas do corpo, caudas mais curtas e enroladas, e orelhas pendentes.
Além disso, os animais selvagens têm ciclos reprodutivos anuais (geralmente, uma vez ao ano), bastante bem determinados e marcados por factores ambientais, como a duração do dia. Já os animais domésticos são "desregulados": podem acasalar-se mais de uma vez por ano, e em qualquer estação, independentemente do ambiente. Esta foi a única característica que os domesticadores de raposas ainda não observaram nos seus animais.
Todas essas características estão presentes nos animais domésticos. Isso indica algumas coisas interessantes.
Em primeiro lugar, que os factores biológicos que determinam o comportamento do animal são muito complexos e interligados com outros factores que são responsáveis por outras características, fisiológicas ou morfológicas, que, aparentemente, não tem nada a ver com o comportamento.
Depois, que quaisquer que sejam os mecanismos responsáveis por estas alterações comportamentais e fisiológicas, eles são mais ou menos os mesmos para todos os vertebrados. Com efeito, as características físicas mencionadas acima são comuns em cavalos, cães, porcos, ratos, ovelhas, bois, etc.
Quando comparadas aos animais selvagens, as raposas domesticadas apresentam ainda outras característica anatómicas: o volume do crâneo diminui em ambos os sexos, e os focinhos tendem a ser mais curtos e largos. Além disso, os crânios dos machos domésticos são mais parecidos com os das fêmeas (isto é, o processo de domesticação parece "feminizar" o crânio dos animais). Os cães apresentam padrões semelhantes, quando comparados com os lobos.
As experiências do grupo de Novosibirsk indicam, portanto, que é plausível imaginar que o principal critério de escolha de quais animais seriam admitidos ao convívio humano foi precisamente sua domesticabilidade, posto que isto também explica as alterações fisiológicas e morfológicas observadas nos animais domésticos, sem necessariamente ter-se que recorrer a outros critérios, como o tamanho do animal e a capacidade reprodutiva. Os russos agora dispõem de raposas domésticas, e estão a pensar inclusive em colocar algumas à venda como animais de estimação, como uma forma de angariar fundos para continuarem as suas pesquisas, além de isso já ser em si uma "experiência" informal bastante curiosa.
Este texto foi baseado fundamentalmente no artigo
"Early canid domestication: the farm-fox experiment"
American Scientist, 1999, 87, 160-169.
Lyudmila N. Trut
Institute of Cytology and Genetics of the
Russian Academy of Sciences
630090 Novosibirsk 90, Russia
[email protected]
A acuidade das informações é de minha responsabilidade.
© Breno Pannia Espósito.
Sinta-se à vontade para utilizar o texto, apenas concedendo-me os créditos.