Teve um final feliz, mas podia não ter tido…
Passou-se com a minha gata Bruma há pouco tempo.
A dada altura, apercebi-me de que a Bruma não ia comer quando os outros iam. Não dei muita importância, mas fiquei atenta… Quando ia comer, trincava dois ou três grãos e ia-se embora. Decidi levá-la à veterinária. Foram feitas análises, detectou-se uma enzima do fígado ligeiramente aumentada. “É uma pontinha de fígado”, disse a veterinária… “Isso quer dizer o quê, exactamente?”, perguntei eu. “Quer dizer que há uma pequena alteração a nível do fígado, mas muito ligeira, o valor está apenas ligeiramente acima do normal, não é preocupante.”.
“E isso deve-se a quê?”, perguntei. “Não se sabe, pode dever-se a qualquer coisa. Vamos aguardar para ver.”
“Qual é o tratamento?”, perguntei eu. “Soro, soro, soro, soro… é a única maneira de “limpar” o sangue”.
Veio-me à ideia a gata da minha irmã, que tinha morrido duas semanas antes com ”fígado gordo”. Também a Lizzie tinha começado assim, foi tratada pelas minhas veterinárias e morreu ao fim de duas semanas, amarela e com valores de bilirrubina altíssimos… Fez soro, soro, soro, soro….
“Pode ser que não seja o mesmo”, pensei eu. “Seria uma grande coincidência”…

A Bruma continuava a não querer comer. Disseram-me para lhe dar comida (latas de a/d) à boca, o que se revelou uma luta… Mas era preciso, e lá fui obrigando a Bruma a comer. Dois terços de lata, no início. Meia lata, passado poucos dias. A luta para a alimentar era cada vez maior. As quantidades ingeridas eram cada vez menores. Dava-lhe comida de manhã, ia deixá-la na clínica para fazer soro, ia buscá-la à noite e voltava a dar-lhe comida. Quando pegava na comida para lhe dar, à noite, vomitava tudo o que tinha comido de manhã. De manhã, vomitava a comida que tinha comido à noite. Em 10 horas, a comida não saía do estômago. Estranho… Fez raio-X com papa de contraste… A papa não saía do estômago. Segundo a vet, o fígado e a vesícula estariam inchados e exerceriam pressão sobre a saída do estômago, não deixando a comida seguir…
Desde o início, as perspectivas não eram nada animadoras. Havia o caso da gata da minha irmã. Havia o testemunho de alguém que, não sendo veterinária, conhece tudo o que é doença de gatos e que me disse que os gatos nesta situação eram muito difíceis de tratar, que morriam todos, que só conhecia uma sobrevivente… Comentei com as vets. Garantiram-me que não, que já tinham salvado alguns. Mas que não era fácil. E que poderia ter de acabar por ter de me decidir pela eutanásia…
As análises que iam sendo feitas revelavam uma bilirrubina sempre a aumentar, a pele da Bruma começava a notar-se amarelada. Era cada vez mais difícil dar-lhe comida. As análises foram sendo repetidas, os valores de bilirrubina sempre a aumentar. Pior: as vets deixaram de conseguir apanhar a veia à Bruma! Foi um gastar de catéteres que não acabava, já se tinham “esgotado” as veias das patas da frente e as das patas de trás. Só se conseguia fazer soro subcutâneo, menos eficaz que o intravenoso… notou-se logo nos valores de bilirrubina…
E a Bruma ia comendo cada vez menos… Um terço de lata a/d por dia, 1/6 de manhã e 1/6 à noite (passava o dia na clínica a fazer soro e não lhe conseguiam dar comida). Eu também não conseguia mais. Uma noite, depois de lutar para enfiar alguma comida pela goela da Bruma apenas para a ver cuspir tudo para cima de mim e para a parede, disse à Bruma: “Desisto! Morre para aí, a ver se me ralo, gata estúpida!!!”


Olhou para mim com o olhar vazio e vidrado que já tinha há alguns dias… Se não fosse de noite… se não tivesse tido de esperar pelo dia seguinte para pedir a eutanásia da Bruma, ela hoje já não estaria aqui.
Umas duas horas mais tarde, já mais calma, resolvi voltar à carga: “Gata estúpida, não hás-de ser mais teimosa do que eu!!!” Consegui dar-lhe ¼ de lata. Pouco, muito pouco… Ela devia comer, pelo menos, uma lata por dia…
No dia seguinte, lá foi a Bruma fazer soro… repetiu análises, a bilirrubina tinha aumentado mais um pouco… a vet diz-me que a situação já se tinha prolongado demasiado (estávamos nestas andanças havia uma semana) e que ia continuar o tratamento mais dois dias, mas, se não houvesse melhorias, eu teria de tomar uma decisão…a gata estava a sofrer… Lá vinha a história da eutanásia outra vez…

Por essa altura, resolvi ir para a Internet para saber mais sobre aquela doença maldita. Será que eu era culpada? Será que podia ter evitado a doença? Queria saber. Mesmo que de nada servisse à Bruma.

Surpresa das surpresas………………. o tratamento da doença consiste em introduzir uma sonda até ao estômago do gato e alimentá-lo através de sonda! Logo desde o início, quando é feito o diagnóstico de “fígado gordo”. Não se espera para ver se melhora, entuba-se logo (há casos raros em que se consegue alimentar o gato dando-lhe comida à boca e não é necessária a sonda). Simples, limpo e com uma taxa de sucesso de 90%! Muito diferente do cenário que me tinham “pintado”, quer da pessoa que me disse que “morriam todos” quer das veterinárias que me diziam que já tinham salvado “alguns”. 90% é muito mais que “alguns”. A alimentação forçada através de sonda é mesmo a única maneira de tratar a doença. Não é o soro que resolve a questão (embora seja necessário, em certa medida, como terapia de apoio), o essencial é alimentar o gato. A explicação é muito simples e faz todo o sentido…
Os gatos, em estado selvagem, muito dificilmente ficam gordos, como acontece com os gatos domésticos, que vivem como pequenos paxás e rapidamente ficam anafadinhos, com grandes depósitos de gordura. A maioria vive bem com essas gordurinhas, que tanto charme lhes dão. O problema surge quando, por algum motivo, o gato deixa de comer normalmente. Pelas minhas investigações, basta o gato comer metade da dose recomendada durante uma semana ou duas para poder desenvolver o tal “fígado gordo”. Por que é que isso acontece? Simples: se o gato deixa de ingerir calorias suficientes, o organismo começa a ir às reservas de gordura. Acontece que o fígado dos gatos, pela sua natureza, não está preparado para metabolizar grandes quantidades de gordura, portanto, numa situação dessas, a gordura acumula-se no fígado e este entra em colapso! Se o gato continua sem se alimentar, a situação vai-se sempre agravando e não há soro que lhe valha! A única forma de inverter o processo é alimentar o gato “á força”, de modo a que o organismo deixe de precisar de recorrer às reservas de gordura e que esta deixe de se acumular no fígado. Porque, no fundo, o que o soro faz é uma “hemodiálise”: limpa o sangue, mas não resolve o problema na origem. Do mesmo modo que um insuficiente renal faz hemodiálise toda a vida, até conseguir um transplante de rim, se tiver sorte. A hemodiálise, por si só, não resolve nada, apenas vai mantendo o doente agarrado à vida até o problema poder ser resolvido na origem, com o transplante de rim. Portanto, havia que resolver o problema na origem!
Depois desta descoberta, fiquei bem mais animada. “Talvez ainda não seja tarde de mais para a Bruma”, pensei eu. Mas, agora, surgia outro problema… Como dizer à veterinária que andei a investigar na net e descobri que a cura era possível em 90% dos casos e que a gata precisava de ser “entubada”? Com certeza, a vet não ia gostar… Afinal, eu estaria a meter a foice em seara alheia e, por outro lado, estaria a dizer que o tratamento seguido não era o mais adequado… E quem era eu para dizer tal coisa? Nem sequer sou veterinária… Teria esse direito?

Nesse dia, quando fui buscar a Bruma à clínica, falei com a veterinária. Ficou ofendida, exaltou-se. Disse-lhe que os americanos tinham uma taxa de 90% de sucesso, o que me parecia bastante bom. Disse-me que sabia muito bem da existência desse método, que também ia aos congressos. “Então, porque não se entuba a gata? Se os americanos têm tão bons resultados…” Que não, que os vets cá seguem as escolas francesa e inglesa, e não a americana, que os americanos são umas bestas e não querem saber do bem-estar do animal, e nós cá pomos o bem-estar do animal em primeiro lugar, e a sonda metida pelo nariz era bastante incómoda… “Doutora, eu quero lá saber qual é a escola que seguem, por mim até pode ser a marciana, desde que tenha bons resultados! Se for preciso pôr a gata a fazer o pino, que seja!” Que não, que a gata estava demasiado consciente para aguentar a sonda, e que a sonda era muito incómoda. “Doutora, não ponho em causa os seus conhecimentos, mas entre um gato confortável e morto e um gato desconfortável e vivo, prefiro o desconfortável e vivo…” Que não, que não conseguiria pôr a sonda com a gata tão consciente, só anestesiando-a, e isso era um grande risco, já que ela estava tão debilitada… que não assumia a responsabilidade do que lhe pudesse acontecer… “Doutora, a anestesia é sempre um risco, até num gato saudável; a gata não está a melhorar, ontem falou-me em eutanásia… Qual é a alternativa? Deixá-la morrer sem tentar nada? Se ela tem de morrer na mesma, pelo menos que morra a tentar alguma coisa!” Insistiu para tentar dar-lhe comida, insisti que já andava a fazê-lo há uma semana sem resultados. Abriu uma lata de Gourmet (do gato da “casa”), o estupor da gata pôs-se a lamber... “Vê? Ela até come…” “Gata estúpida, só para me fazer ficar mal vista!”


Lá voltei para casa, com passagem no hipermercado, para comprar latinhas de gourmet de todos os sabores existentes no mercado. Cheguei a casa, abri uma lata. Nada, nem olhou. Abri outra… Nada. Ainda outra… Nada! Cozi frango (sempre apreciado). Nada! Nem olhava para o prato. Cozi peixe. Népia! “Bonito! Amanhã, a vet ainda me vai chamar mentirosa!!!”


No dia seguinte, lá fui deixar a Bruma de manhã, para lhe porem a sonda, como acordado. Começou a ser alimentada várias vezes ao dia, com papa especial. Dois dias depois, os valores de bilirrubina tinham descido claramente. Bom sinal. Mais dois dias passaram, novas análises, bilirrubina mais baixa… Nas análises seguintes, bilirrubina apenas um pouco acima do normal… 10 dias depois… bilirrubina dentro dos valores normais, a cor amarela da pele tinha desaparecido por completo. 10 dias!! Os sites americanos diziam que podia ser preciso alimentar através de sonda durante seis semanas. Nada mau! 10 dias! E pensar que a gata tinha levado um carimbo de “CONDENADA” desde o início…
Ainda houve um susto, pelo meio: devido a tanto soro, a Bruma teve um desequilíbrio de electrólitos, o potássio estava muito baixo. Fui dar com ela deitada, parecia morta, de olhos abertos… Abanei-a, não reagia… Depois, lá percebi que ainda respirava. Eram 22:30 de sábado. O diagnóstico já tinha sido feito à tarde, mas não havia potássio na clínica, a vet ficou de arranjar para o dia seguinte… Afinal, tive de ir para a clínica nessa noite, já que a situação era de risco. Felizmente, a vet já tinha o potássio com ela. O complicado era que o potássio tinha de ser dado por soro intravenoso, muito lentamente, durante hora e meia… e há mais de uma semana que não conseguiam apanhar as veias à Bruma… Bom, ia-se tentar… Nem sei quantos catéteres foram para o lixo, mas veias nem vê-las! Tentou-se a jugular… conseguiu-se… e depois foi ficar hora e meia com a gata imobilizada, cabeça puxada para trás, a fazer soro muito lentamente…
Entretanto, foi tirada a sonda… Lá vinha outra batalha: a Bruma tinha de voltar a comer por ela, e parecia “destreinada”… Foi preciso tomar estimulantes, durante uns dias, mas lá acabou por começar a comer sem essas “ajudas”. Felizmente, até hoje continua a comer muito bem. Recuperou lentamente o tónus muscular, que tinha perdido por completo, por ter passado tanto tempo sem se mexer. Até há poucos dias, o único sinal da doença era o pêlo rapado nas quatro pernas, na garganta e na testa… Mas até esse sinal desapareceu. A Bruma está viva e mais bonita do que nunca. Valeu a pena o esforço. Valeu a pena a pequena fortuna que gastei. Valeu a pena discutir com a vet.
Moral da história: não desistam facilmente, façam perguntas, investiguem; os vets não sabem tudo, podem sempre aprender alguma coisa, até mesmo, por que não?, com um leigo em medicina veterinária, se tiverem humildade suficiente para isso. Não digo que vão para o consultório do veterinário dar palpites sobre como ele deve fazer as coisas. Mas se tiverem informações de fonte fidedigna (este pormenor é muito importante!) que mostrem que o vosso veterinário não está a seguir o caminho mais correcto, não tenham medo de dar a vossa opinião. Se for preciso, mudem de veterinário. Eu estava preparada para o fazer, se a minha vet não cumprisse com o prometido. Veterinários há muitos, e os nossos bichanos são insubstituíveis. Neste momento, só tenho pena de não ter investigado a doença mais cedo. Talvez a Lizzie, a gata da minha irmã, estivesse também ainda viva… Mas fico contente por a minha “guerra” com a vet ter sido útil não só à Bruma. Umas semanas depois de a Bruma ter tido “alta”, estava internado lá na clínica um gato completamente assanhado, com colar isabelino e sonda metida pelo nariz. Perguntei o que tinha o gato. “Fígado gordo, como a sua Bruma”…
Se chegou até aqui, gabo-lhe a paciência....