"Ciência, Animais e Ética: Um conflito em vias de ser resolvido"
Por Miguel Moutinho, Director Executivo da ANIMAL e Presidente do Centro de Ética e Direito dos Animais
A relação da ciência com os animais pode ser vista, hoje em dia, como paradoxal e ainda conflituosa, sobretudo se avaliada de um ponto de vista ético. Contudo, e como defenderei neste artigo, este é um conflito que está em vias de ser resolvido, desde logo por muitos agentes da investigação e do progresso científicos.
Analisemos, pois, este paradoxo e conflito, que podem começar por se identificar da seguinte maneira. Por um lado, temos as actividades de investigação e pesquisa em diversas áreas das ciências desenvolvidas por determinados grupos da comunidade científica que ainda vêem o uso de animais em experimentação como útil e aceitável. Aqui, a relação da ciência com os animais é hostil e levanta fortes questões morais, provocando a contestação, quer da sociedade e das organizações de defesa dos animais, quer de cientistas que se opõem ao uso de animais em experimentação.
Por outro lado, temos, a nível mundial, um grupo crescente de cientistas, também de diversas áreas das ciências, que, além de considerarem o uso de animais na investigação científica eticamente inaceitável, consideram também, com base em sólidas evidências científicas e em rigorosos argumentos, que a boa ciência rejeita o uso de animais em experimentação por não ser uma fonte fidedigna de resultados, por ser indutor de grandes erros no que se refere às conclusões que se pretendem conseguir, e por, em última análise, ser um obstáculo ao progresso da ciência, na medida em que, enquanto se dispuser dos animais como cobaias, além dos problemas morais que isso levanta, não se investirá seriamente na procura de métodos de experimentação e investigação mais avançados, mais seguros e mais credíveis. Aqui, a relação da ciência com os animais é já de respeito, havendo um número crescente de cientistas a apoiarem esta posição.
Com efeito, há cada vez mais cientistas em todo o mundo a oporem-se ao uso de animais em experiências, fundamentando as suas posições quer com preocupações éticas, quer com preocupações com o avanço da ciência e com a segurança e fiabilidade dos resultados e conclusões da investigação científica. É de referir como exemplo desta crescente tendência – que a todos os títulos tem que ser registada como feliz – o Physicians Committee for Responsible Medicine (PCRM – www.pcrm.org), uma organização norte-americana sediada em Washington, D.C. (EUA) que congrega vários médicos e outros especialistas em ciências biomédicas, que, nesta mesma qualidade, advogam o fim da experimentação animal e a promoção das alternativas existentes a esta (tais como a cultura de células humanas para experimentação, o software de investigação, a epidemiologia e a medicina preventiva, entre outras) e da investigação de novos métodos alternativos, desde logo como meios privilegiados para que o avanço da ciência se dê por um lado com mais sucesso e, por outro, sem colidir com princípios éticos da maior importância respeitantes à maneira como devemos tratar os animais. O PCRM advoga também a adopção do vegetarianismo, primeiramente como regime alimentar mais saudável que é, fazendo parte de uma bem sucedida prevenção de inúmeros problemas de saúde que estão associados ao consumo de alimentos de origem animal, mas também advogado por esta instituição como atitude ética decisiva na concretização do respeito que devemos aos animais e que passa por não os comermos.
O PCRM, entre outras instituições, é de facto um excelente exemplo de como a própria comunidade científica se empenha em fazer com que a ciência tenha uma relação de respeito com os animais.
Há, porém, ciências que, mais do que terem apenas uma relação de respeito para com os animais, são e têm sido elementos fundamentais na produção de conhecimentos da maior importância para melhor compreendermos os animais que não pertencem à espécie humana mas que connosco partilham tantas características, quer fisiológicas, quer psicológicas, emocionais e até mesmo intelectuais.
A biologia e a zoologia, por exemplo, são ciências fundamentais para a nossa vontade, necessidade e dever de saber mais não apenas acerca da nossa própria espécie mas também acerca de todas as outras espécies animais. É, de resto, consensual que o papel dos biólogos e zoólogos na defesa dos animais e da conservação da natureza, da biodiversidade e da vida selvagem tem sido da maior importância e que é verdadeiramente notável e digno de louvor. De igual modo e complementarmente, o surgimento da recente mas já muito desenvolvida ciência que é a etologia tem-nos levado a compreender os outros animais, não só do ponto de vista da sua fisiologia e morfologia, mas também do ponto de vista da sua psicologia, da sua complexidade mental e emocional. Aliás, a etologia cognitiva, a etologia aplicada e a antropologia aplicada (esta última, reportando-se sobretudo aos gorilas, bonobos, chimpanzés e orangotangos que, com os humanos, formam a família dos grandes primatas) têm-nos permitido conhecer diversos factos verdadeiramente impressionantes no que se refere às faculdades intelectuais de animais que, embora não pertençam à espécie humana, têm graus de racionalidade consideráveis. Na verdade, vários etólogos e antropólogos têm-se associado, no seguimento dos seus estudos, à defesa activa dos animais, nomeadamente das espécies que estudam (sendo os primatas e os cetáceos exemplos disso), na medida em que, no decorrer das suas investigações, estes cientistas se apercebem que, entre animais não-humanos e animais humanos, são óbvias as semelhanças ou mesmo igualdades naquilo que é fundamentalmente importante do ponto de vista moral – a senciência, ou seja, a capacidade que um determinado ser tem de experienciar o sofrimento físico e psíquico-emocional, assim como um grau mais ou menos desenvolvido de consciência (dependendo da espécie e também do indivíduo) que faz com que um ser não seja um mero receptáculo de sensações, mas sim um indivíduo com uma experiência subjectiva da sua vida, que, enquanto tal, tem um interesse elementar, mais ou menos consciente (mas sempre respeitável), em preservar.
Numa outra área da ciência, correspondendo às descobertas das ciências veterinárias, da biologia, da zoologia e da etologia, mas correspondendo também a preocupações éticas com os animais, surgiu o bem-estar animal como ciência, e que tão útil se tem revelado para, com maior exactidão e em detalhe, percebermos que condições específicas são fundamentais para que um animal possa sentir-se física, psíquica e emocionalmente bem.
E, como não poderia deixar de ser, também a filosofia – nomeadamente a ética ou filosofia moral – e o direito corresponderam às questões morais que os factos trazidos pelas ciências trouxeram a respeito dos animais não-humanos. Na filosofia moral, a ética aplicada aos animais é uma das mais profícuas áreas de investigação e debate filosófico, com milhares de artigos, conferências e livros de especialistas em ética que principalmente nos últimos trinta anos foram produzidos para tratar, com uma abordagem tão científica quanto a filosofia o permita (embora, aqui, normativamente), a maneira como devemos tratar os outros animais. E o direito também não faltou às exigências morais que as conclusões da ética aplicada aos animais deixou claras: o direito dos animais é, sobretudo nos EUA e no Reino Unido mas também já em Portugal, um novo e estimulante ramo das ciências jurídicas que procura encontrar as melhores soluções jurídicas para consagrar um estatuto jurídico aos animais que seja compatível com o seu estatuto moral e que permita proteger juridicamente os animais de actos que atentem contra os seus direitos fundamentais.
É, então, como vemos, verdade que o papel dos cientistas e da ciência pode ser activamente benéfico para os animais, quer 1) pelos resultados das muitas pesquisas das diversas ciências que estudam os animais, quer 2) pela maneira como esses resultados se tornam elementos-chave para compreendermos os outros animais e o respeito que lhes devemos e para fundamentarmos a defesa dos seus direitos fundamentais, quer ainda 3) pela maneira como os próprios cientistas se envolvem na defesa dos animais sobre os quais nos ajudam a aprender mais, lembrando-nos inclusivamente que também nós somos animais e que, por termos capacidades racionais avançadas que nos permitem reflectir moralmente sobre os nossos actos, devemos assumir com responsabilidade os deveres especiais que desta condição resultam, designadamente no respeito que devemos manifestar pelos outros animais com os quais partilhamos a Terra, uma habitação comum a todas as espécies. É legítimo que nos consideremos portadores de um estatuto especial em relação à Terra e às outras espécies animais, conquanto consigamos compreender que esse estatuto implica deveres especiais de respeito, conservação e protecção e não quaisquer direitos especiais de exploração, abuso e destruição.
Concluo defendendo que o conflito que terá existido entre a ciência, os animais e a ética está em vias de ser resolvido. Se é verdade que hoje em dia subsistem ainda actos científicos (ou, pelo menos, desenvolvidos por cientistas ou investigadores que o dizem fazer “em nome da ciência”) que são hostis aos animais, não é menos verdade que estes actos estão cada vez mais sob forte crítica – que, como já referi, está fundamentada também com evidências e argumentos científicos – e caminham para um fim que está próximo. Além disso, hoje são cada vez mais comuns, procurados e apreciados, desde logo por sectores influentes da comunidade científica, os actos científicos benéficos para os animais, não só com o desenvolvimento e implementação das alternativas à experimentação animal, mas com o avanço e aplicação dos conhecimentos resultantes das ciências que estudam os animais ou a nossa relação com eles. De tal maneira assim é, que acredito francamente que, dentro de alguns anos, a associação entre a ciência, os animais e a ética, longe de poder ser de algum modo conflituosa, será no mínimo harmoniosa e em boa medida proveitosa para o equilíbrio das relações dos humanos com os outros animais e com o planeta Terra. Até lá, e não obstante o optimismo que nos é permitido a este respeito, não estamos isentos do dever de acelerar este progresso e de o tornar mais próximo. Pelo contrário, estamos todos convocados para esta tarefa.
[b]"Ciência, Animais e Ética: Um conflito em vias de ser resolvido"[/b]
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É uma questão de dever individual e crença nas nossas conviações, ou seja, se acreditamos que podemos viver em harmonia e compreendemos os animais como seres pertencentes ao mesmo mundo devemos agir em conformidade, as nossas acções têm de corresponder com as nossas ideias, e estas influenciam e dão conhecimenbo aos que estão em nosso redor que aos poucos se vão apercebendo e tirando as suas elações.
Porquê “direitos para os animais”?
A discriminação ética segundo a nossa espécie é tentar justificar, habitualmente, apelando à superioridade de certas possibilidades intelectuais humanas sobre os animais. Mas o certo é que um grande número de seres humanos carece de tais capacidades. Nunca existirá característica que nos coloque a nós, seres humanos, acima do resto dos animais. Quer seja a inteligência, a língua, a auto consciência…. Haverá sempre um humano privado de alguma delas.
Pôr em relevo esta questão não pressupõe um insulto aos seres humanos privados destas características, ao contrário, quem discrimina por razões de racionalidade outro animal, fá-lo também ao ser humano menos inteligente. A única atitude coerente é o respeito uns pelos outros.
Por “Direito dos Animais” refere-se, num sentido geral, a necessidade que os interesses dos animais sejam tidos em conta e justamente valorizados, desfrutando do devido respeito e protecção legal. Os animais, incluindo os humanos, são seres com capacidades para gozar ou sofrer, e, portanto, com interesses próprios. É por eles que os direitos dos animais devem ser tomados verdadeiramente a sério, sem se resumirem a uma tímida preocupação pelo seu bem-estar, e não porque nos parecem simpáticos ou em vias de extinção, mas sim como indivíduos com interesses próprios.
Os abusos feitos diariamente aos animais em âmbitos como a experimentação animal não são mais que o reflexo da negação do parágrafo anterior, de uma falta de reconhecimento do estatuto moral dos animais, produto a que se denominou uma atitude ou mentalidade especista.
O especismo (ou discriminação de espécie) justifica-se habitualmente apelando à superioridade de certas possibilidades intelectuais humanas sobre os restantes animais. Mas o certo é que um grande número de seres humanos (doentes mentais, doentes de Alzheimer etc.. ) carecem de tais capacidades (chegando alguns animais não humanos a manifestar sintomas idênticos). De modo, a que dificilmente aceitaremos como válidos tais critérios. Ao basear-nos neles justificaríamos o mau trato e a exploração destas pessoas, algo totalmente intolerável. Assim, a capacidade que nos faz seres humanos de atenção moral e legal, só poderia ser, portanto, a de poder sofrer e gozar o que também é comum a todos os animais. E, o que é claro é que, se existe algo a que podemos chamar de ética, não pode haver critério que autorize um tratamento distinto e indivíduos dotados das mesmas capacidades. Deste modo, nunca poderá ser aceite qualquer prática humana que degrade os outros animais do mesmo modo que não permitiríamos, que em lugar deles, os afectados fossem seres humanos igualmente dotados.
Há quem afirme que colocar em relevo esta questão supõe um insulto a estes seres humanos privados de características, curiosamente propostas por eles mesmo, como moralmente relevantes. Na realidade, são eles, os defensores do especismo, que os ultraja, gravemente, ao defender um critério discriminatório que os relega como sendo meros objectos. Quem discrimina pela razão da racionalidade outro animal, fá-lo também aos seres humanos menos inteligentes. A única atitude coerente é o respeito uns pelos outros. Deste modo, fica claro, que a defesa do especismo resulta incompatível não só, como é lógico, com os direitos dos animais, como também com os próprios direitos dos humanos.
As consequências disto, em definitivo, para a questão, são que a vivissecção é também uma metodologia reprovável do ponto de vista exclusivamente moral.
Óscar Horta
Derechos para los Animales.org
A discriminação ética segundo a nossa espécie é tentar justificar, habitualmente, apelando à superioridade de certas possibilidades intelectuais humanas sobre os animais. Mas o certo é que um grande número de seres humanos carece de tais capacidades. Nunca existirá característica que nos coloque a nós, seres humanos, acima do resto dos animais. Quer seja a inteligência, a língua, a auto consciência…. Haverá sempre um humano privado de alguma delas.
Pôr em relevo esta questão não pressupõe um insulto aos seres humanos privados destas características, ao contrário, quem discrimina por razões de racionalidade outro animal, fá-lo também ao ser humano menos inteligente. A única atitude coerente é o respeito uns pelos outros.
Por “Direito dos Animais” refere-se, num sentido geral, a necessidade que os interesses dos animais sejam tidos em conta e justamente valorizados, desfrutando do devido respeito e protecção legal. Os animais, incluindo os humanos, são seres com capacidades para gozar ou sofrer, e, portanto, com interesses próprios. É por eles que os direitos dos animais devem ser tomados verdadeiramente a sério, sem se resumirem a uma tímida preocupação pelo seu bem-estar, e não porque nos parecem simpáticos ou em vias de extinção, mas sim como indivíduos com interesses próprios.
Os abusos feitos diariamente aos animais em âmbitos como a experimentação animal não são mais que o reflexo da negação do parágrafo anterior, de uma falta de reconhecimento do estatuto moral dos animais, produto a que se denominou uma atitude ou mentalidade especista.
O especismo (ou discriminação de espécie) justifica-se habitualmente apelando à superioridade de certas possibilidades intelectuais humanas sobre os restantes animais. Mas o certo é que um grande número de seres humanos (doentes mentais, doentes de Alzheimer etc.. ) carecem de tais capacidades (chegando alguns animais não humanos a manifestar sintomas idênticos). De modo, a que dificilmente aceitaremos como válidos tais critérios. Ao basear-nos neles justificaríamos o mau trato e a exploração destas pessoas, algo totalmente intolerável. Assim, a capacidade que nos faz seres humanos de atenção moral e legal, só poderia ser, portanto, a de poder sofrer e gozar o que também é comum a todos os animais. E, o que é claro é que, se existe algo a que podemos chamar de ética, não pode haver critério que autorize um tratamento distinto e indivíduos dotados das mesmas capacidades. Deste modo, nunca poderá ser aceite qualquer prática humana que degrade os outros animais do mesmo modo que não permitiríamos, que em lugar deles, os afectados fossem seres humanos igualmente dotados.
Há quem afirme que colocar em relevo esta questão supõe um insulto a estes seres humanos privados de características, curiosamente propostas por eles mesmo, como moralmente relevantes. Na realidade, são eles, os defensores do especismo, que os ultraja, gravemente, ao defender um critério discriminatório que os relega como sendo meros objectos. Quem discrimina pela razão da racionalidade outro animal, fá-lo também aos seres humanos menos inteligentes. A única atitude coerente é o respeito uns pelos outros. Deste modo, fica claro, que a defesa do especismo resulta incompatível não só, como é lógico, com os direitos dos animais, como também com os próprios direitos dos humanos.
As consequências disto, em definitivo, para a questão, são que a vivissecção é também uma metodologia reprovável do ponto de vista exclusivamente moral.
Óscar Horta
Derechos para los Animales.org