segunda fev 22, 2010 1:20 pm
Dou-vos, então, conhecimento, de como está a decorrer a adaptação da ViVi à nova família de acolhimento, composta por dois bípedes, por vários caninos e por uns tantos (poucos) felinos.
Começo por dizer que foi, por todos, bem recebida e que, após as cheiradelas , trocas de odores e curiosidade habituais, deixaram-na em paz. A ViVi, considerando que tanta boa vontade merecia retribuição condigna, atracou-se à ração que tinha sobrado do almoço dos anfitriões de quatro patas e deu boa conta do recado.
Via-se que a jovem estava cansada e, depois de a LuMaria, a LuluB e o senhor simpático que lhes forneceu a boleia terem saído, adormeceu ao meu colo, enquanto eu pasmava para a televisão, como se a minha vida não tivesse outro objectivo que não fosse o de embalar cães.
Por norma, deito-me com as galinhas, não só como forma de defesa contra o cansaço, mas também por hábito e, principalmente, porque tenho que me levantar cerca das 6h da manhã. Portanto, a seguir ao jantar, faço os preparativos para a noite: dou lata aos gatos, frango com arroz à Doris Ceguinha, um pouco de comida em lata à Margarida-Lassie e à Fortunata-Maria, aka Naná, limpo as liteiras dos gatos, transfiro a cama da Margarida para o alto das escadas, onde ela gosta de dormir, espalho colchões de espuma e cobertores quentes pelo chão da sala e do meu quarto, para eles se deitarem, ponho édredons nas camas de plástico (os cobertores e édredons são especial obséquio da LuluB, que recolhe enxoval canino para mim), trato a ferida na pata do Sansão e, de caminho, dou-lhe umas cachaporradas na cabeçorra para ele não ir lá lamber, o ***, xixi e cama. Desta vez, como é óbvio, fiquei a observar o que a ViVi iria fazer. Não esperei muito: foi para debaixo da minha cama, onde estão três camas de plástico, devidamente guarnecidas de cobertores, e deitou-se numa. E ali ficou, sem tugir nem mugir, durante toda a noite.
Cerca das 8 da manhã levantei-me – afinal era Domingo – e tive a felicidade de ir dar com a minha cozinha completamente inundada devido a uma infiltração que o empreiteiro não consegue remediar. Linda maneira de começar o dia. Removi tudo da cozinha, desviei o frigorífico e a máquina de lavar, o que me dá muito gozo, porque testa a minha força muscular, e varri a água para fora, após o que sequei o chão com a esfregona, mudei a roupa encharcada das camas dos gatos e arrumei tudo nos sítios. Levei cerca de uma hora nestes preparos e quando fui ao meu quarto, a ViVi estava deitada ao lado do membro masculino… (dá-me ideia que isto não está a sair bem), quero dizer, da outra metade humana da família de acolhimento, de barriga para o ar, a receber cócegas.
Depois, foi o habitual: tudo o que eu fazia lhe despertava interesse. Observou-me, com grande atenção, a estender a roupa, a arrumar a casa, a limpar caixotes de gatos. Ainda com um maior e renovado interesse, viu o meu marido a dispor “N” pratos em cima da bancada da cozinha e a verter ração e lata para dentro dos ditos, e a distribuí-los, não quis comer sozinha fechada no meu quarto para os outros não a roubarem – ó vã ilusão! – pelo que acabou por haver uma troca: ela comeu os de uns e os de uns comeram o dela.
A seguir, saímos. Andámos 50 metros, começou a chover, eu insisti, porque me parecia um aguaceiro e que parava, e era, mas não parou, voltámos para casa encharcadinhas, limpámo-nos à mesma toalha, porque, a esta altura dos acontecimentos, eu já estava distraída e numa de tanto se me dá.
Depois do almoço (do meu), tornámos a sair. Desta vez, levei a Bárbara para lhe fazer companhia. A Bárbara é a mais jovem da minha matilha e deve andar pelos seis anos. É bastante doida e a ViVi, com o discernimento próprio de um cão inteligente, já viu que aquela é que lha dá troco nas brincadeiras. Fomos ao terreno onde costumo soltá-los (mas claro que não soltei a ViVi) e ela teve, então, oportunidade, de experimentar o cheiro a coelhos e a outra bicharada, a erva molhada, enfim a todos os odores que um cão tem o direito e o dever de snifar.
O resto do dia decorreu sem incidentes. A ViVi seguia-me para todos os lados, observando com saudável curiosidade todos os meus movimentos. Nos raros momentos em que me sentava, queria subir para o meu colo, e lá ficava a modorrar.
À noite bateu-se com uma refeição de frango com arroz misturado com ração - bem que me podiam trazer uma que não comesse, género robot, que só fingisse, fazendo movimentos de abrir e fechar a boca – e após as actividades habituais, seguiu-me para o quarto, aninhou-se na cama debaixo da minha e lá ficou até de manhã, desta vez só até às 6h. A má notícia é que eu tive a mesma dose em matéria de inundação na cozinha, onde ela chapinhou à vontade, sempre com muita atenção a ver-me suar as estopinhas, não tive tempo para sair com ela, mas o tal membro masculino, aliás órgão masculino, ou seja, a metade masculina da família de acolhimento, leva-a. Por isso, não há crise. Mas ainda tive tempo de lhe dar mais uma tigelada de frango com arroz e ração, que ela recusou, coitadinha, tanto fastio, tanto fastio… e rosnando aos outros que cobiçavam o pratinho.
Como já disse à LuMaria, de minha casa a ViVi não vai sair com uma educação esmerada. Não se vai sentar, deitar ou dar a pata, a comando. Sou pessoa tolerante e considero que os cães devem ser cães e comportar-se como cães. Eu também me sento e deito quando quero e não quando me mandam. Têm rotinas, sim, comem a horas certas, dormem a horas certas, passeiam a horas certas e isso, em si, já lhes dá uma certa educação, porque lhes “organiza” a vida. Organiza a deles e organiza a minha, porque, também eu, quero ter algum tempo para mim. Em matéria de educação, os meus objectivos centram-se na obediência à chamada, pelo nome e/ou com apito ultra-sónico (um objecto muito útil), quando os solto no campo, em sítio seguro, e em impedi-los de ladrar de noite, e também de dia, a não ser que haja razões para tal. E, por vezes, há. E outras coisas que são importantes para os cães, eles aprendem entre si.
A ViVi é uma criaturinha encantadora e inteligente. Merece o melhor. Todos os cães merecem.
Théo Gygas, um senhor brasileiro entendido em cães e que escrevia sobre eles, diz no seu livro “Um Cão em Nossa Casa” que a vida de um cão feliz e saudável não tem história. E é esse o meu desejo: que a vida da ViVi não tenha história.
<p>Au début, Dieu créa l'homme. Mais en le voyant si faible, il lui fit don du chien. (Toussenel)</p>