segunda abr 26, 2010 11:36 am
“No 202, todas as manhãs, às 9 horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo, banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão branco de pêlo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette toda de cristal (por causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola, que o homem do século XIX necessita para não desfear o conjunto sumptuário da Civilização e manter nela o seu Tipo. As escovas sobretudo renovavam, cada dia, o meu regalo e o meu espanto – porque as havia largas como a roda maciça de um carro sabino; estreitas e mais recurvas que o alfange de um mouro; côncavas, em forma de telha aldeã; pontiagudas, em feitio de folha de hera; rijas que nem cerdas de javali; macias que nem penugem de rola! De todas, fielmente, como amo que não desdenha nenhum servo, se utilizava o meu Jacinto. E assim, em face do espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este Príncipe passando pêlos sobre o seu pêlo durante catorze minutos.”.
“A Cidade e as Serras” , Eça de Queiroz
Versão da Colette, quase século e meio mais tarde:
No nº. 10 da Aldeia do Mormaço, aos Domingos, pelas 14,00h, depois do almocinho e de um copinho de pomada da Sutra, para ganhar coragem e forças, de t-shirt e de jeans, já bastante cevados, e marcados de patas, entra a Colette, na casa das traseiras, contígua à dela, a cair aos bocados, cheia de teias de aranha, e dispõe , borrifando-se para os micróbios, sobre uma tábua colocada em cima de dois cavaletes, e coberta com um toalhão, variadíssimos utensílios e materiais, algodão, toalhetes a fingir de Dodot, cotonetes, compressas, corta-unhas, pomadas (verdadeiras) e gotas diversas, um alguidarzinho com água morna, constantemente renovada para lavar focinhos, tesouras… e escovas e pentes: pente duplo, com dentes estreitos para tirar nós, e dentes largos para alisar, mais outro pente próprio para pulgas, a furminator para tirar os pêlos mortos, escova de cerdas para pêlos curtos, escova de pinos para pêlos compridos e densos, cardador para pêlos cerdosos e emaranhados. De todas, fielmente, a Colette se serve, porque a quantidade e a qualidade de pêlos que possui, a isso a obriga. E assim, em face da parede branca, cheia de fissuras (fissura é mais bonito do que “racha”), e pontilhada por cagadelas de mosca e de outros insectos, porque a casa não tem porta, passa a Colette a tarde de Domingo, escarafunchando coiratos e passando pêlos sobre pêlos, caninos e felinos, durante 5 horas.
Depois disso, a Colette, toma mais um pouco da pomada da Sutra, panaceia para todas as doenças, para recuperar do desgaste.
<p>Au début, Dieu créa l'homme. Mais en le voyant si faible, il lui fit don du chien. (Toussenel)</p>