terça jan 13, 2004 5:32 pm
Centenas de milhares de espécies exóticas são traficadas da América Latina para a Europa. Três em cada quatro animais morrem antes de chegar ao destino, em um comércio ilegal somente superado pelos de drogas e armas.
MILÃO.- Pelo menos 110 mil pássaros exóticos, a maioria da América Latina, alegram com seus cantos e suas cores as casas de famílias italianas. São os sobreviventes do cruel e lucrativo tráfico de animais silvestres. Ali, e no resto da Europa, abundam répteis, tartarugas e pequenos macacos usados como animais de estimação, e artesanato feito com o casco da tartaruga, barbatana de baleia e penas de aves multicoloridas. As selvas do Brasil, Bolívia, Equador e Colômbia, bem como outros ecossistemas da América Central, México, Argentina e Paraguai, converteram-se nas principais fontes do tráfico de espécies para a União Européia (UE), primeiro importador mundial de peles de répteis, papagaios, jibóia, pítons, e o segundo em primatas.
Embora o comércio legal de animais e plantas esteja regulado pela Convenção Internacional sobre o Comércio de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestres (Cites), calcula-se que o ilegal seja um terço das vendas mundiais no valor de US$ 25 bilhões ao ano, um negócio inferior apenas ao tráfico de armas e de drogas. “Há uma enorme demanda por vida selvagem na Europa. O mercado varia de acordo com a tendência em moda e os costumes de cada nação. A Itália ama e cria os pássaros e sempre esteve interessada em seu comércio, como Espanha, Holanda e Bélgica, disse ao Terramérica o diretor da Traffic Internacional na Itália, Massimiliano Rocco.
À Itália chegam 35 mil exemplares por ano, entre eles, tucanos, papagaios, iguanas, crocodilos, pequenos macacos, aranhas e caimãs. Um em cada três é contrabandeado, segundo organizações ambientalistas. O negócio gera ganhos de US$ 500 milhões anuais, asseguram. Na Espanha, a procura pelas espécies exóticas é tamanha que os colecionadores chegam a pagar US$ 1 milhão por uma arara grande. “O tráfico ilegal de animais, procedentes da América Latina, tem seu ponto de entrada mais importante na Espanha, que os reexporta para o resto do continente”, afirmou ao Terramérica o porta-voz do Fundo Mundial para a Natureza (WWF-Adena) na Espanha, Miguel Ángel Valladares.
No Brasil são capturados mais de 38 milhões de exemplares por ano, de acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas). Noventa por cento deles morrem durante a caça ou o transporte. Dos sobreviventes, 40% (1,52 milhão) são exportados, e são as “espécies mais raras e ameaçadas de extinção”, explicou ao Terramérica Dener Giovanini, coordenador da Renctas. Os caçadores locais lucram pouco. Um pássaro melro (Gnorimopsar chopi) é comprado por US$ 27 nos mercados de rua do sul do Brasil e é cotado a US$ 2,5 mil na Europa. A arara rosada (Ara macao) custa US$ 15 nas selvas brasileiras e até US$ 2 mil na Itália.
Tudo indica que se trata de um negócio em ascensão. Entre 1997 e 2000, a polícia italiana realizou mil operações e apreendeu 150 mil exemplares, vivos e mortos, procedentes da América Latina, África e Europa Oriental. No México foram apreendidas em 2002 mais de 206.828 espécies de animais e plantas, quantidade 110 vezes superior à registrada em 2001, segundo a Procuradoria Federal de Proteção do Meio Ambiente.
Os traficantes usam as mesmas vias que os importadores para transportar animais da América Latina para a Europa: vôos diretos e navios transatlânticos. Falsificam certificados, fazem triangulações e camuflam a mercadoria, a misturam com cargas legais para confundir as autoridades ou a enviam em caixas com fundo falso. “Os canais do comércio legal e ilegal têm fronteiras frágeis. Em uma mesma jaula podem ser encontradas espécies com e sem certificados. Transporta-se, por exemplo serpentes venenosas com tartarugas e quando passam pela alfândega ninguém se atreve a verificar seu conteúdo”, assinalou Ciro Troiano, da Liga Antidissecação Animal (LAV), da Itália.
As viagens de um continente a outro são um calvário. Três em cada quatro animais jamais chegam ao seu destino. Tucanos camuflados com os bicos amarrados com fita adesiva, papagaios dentro de meias e que têm apenas um pequeno buraco para respirar, aves narcotizadas ou com os olhos perfurados para que não cantem por não verem a luz do sol, são alguns dos passageiros destes vôos da morte. “As empresas aéreas não cumprem normas internacionais. Durante o transporte morrem entre 30% e 60% das espécies”, afirmou Giovanni Guadagna, também da LAV.
O panorama se complica porque máfias internacionais do contrabando e do narcotráfico da América Latina, Ásia e Europa estão envolvidas na venda de espécies. Em meados deste mês, a polícia italiana descobriu em Palermo, o berço do crime organizado, um criadouro ilegal de cavalos de corrida, cães de luta, porcos de caça e 300 tartarugas de procedência latino-americana
No Brasil, uma comissão parlamentar documentou a ligação entre o tráfico de animais e o de drogas e pedras preciosas, assegurou Giovanini, da Renctas. No México, vários chefes da droga estão envolvidos no tráfico de espécies. Diversos zoológicos ainda resguardam parte das 70 espécies apreendidas em 1993 em uma fazenda do narcotraficante Joaquín “el Chapo” Guzmán.
Na maioria dos países o tráfico de espécies está tipificado como crime. As sanções variam: de seis meses a seis anos de prisão no México, cinco anos na Espanha, ou dois anos, que podem chegar a 12 por associação mafiosa, na Itália. No Brasil a legislação além de fraca não é aplicada, segundo ambientalistas. “Se alguém é detido, paga fiança de US$ 100 e fica livre. As condenações são penas alternativas para realizar trabalho comunitário”, explicou Giovanini.
No México, em 2002, 17 pessoas foram processadas e pagaram multas de US$ 580 mil. “O tráfico de espécies é relativamente tolerado pela sociedade, e isto faz com que o ilícito não seja tão perseguido quanto o narcotráfico ou a venda ilegal de armas”, disse ao Terramérica o diretor da ong Naturalia, Oscar Moctezuma, do México.