fonte: Revista de consumidor nº108 - Agosto 2001
http://www.ic.pt/ica/plsql/revista.home?num=108
Consumidores de tradições violentas
João Cidreiro Lopes*
Ao longo dos séculos os povos têm lutado por melhorar a sua qualidade de vida. À medida que a civilização progride vão sendo abolidas práticas violentas que deixaram de ter sentido, substituídas por alternativas menos cruéis. Custa pois aceitar que ainda haja “consumidores de tradições bárbaras” que, embora desejando usufruir de todos os benefícios que o progresso lhes possa trazer, fingem ignorar a evolução dos tempos e, argumentando manter uma tradição, continuam a festejar a morte em sangrentos espectáculos.
Repetiu-se mais uma vez em Agosto a tradição de matar, em espectáculo popular, meia dúzia de touros, a pretexto de a população e a igreja de uma vila alentejana festejarem Nª Srª da Conceição. Enquanto as autoridades locais fechavam os olhos e os ouvidos aos apelos dos governantes, o povo levou por diante mais uma ingénua mas sangrenta homenagem à santa padroeira. Como desculpa pela desobediência à legislação invocou-se a vontade de não deixar morrer uma tradição. Mais uma vez a tradição não morreu... mas morreram os animais.
Os infractores, embora residindo junto à fronteira com Espanha, são cidadãos portugueses – gente pacífica e bem intencionada que só pede que o resto do país os deixe em paz, como aliás sucede durante o resto do ano. Para estes aficionados da festa brava, matar meia dúzia de touros na via pública é uma tradição inofensiva, comparada com o número de animais diariamente abatida nos matadouros, pelo que desobedecer à lei não é crime.
Esquecem, porém, que se trata de duas situações distintas: em Barrancos, a pretexto de uma tradição religiosa e para divertimento popular, são publicamente violentados e mortos animais, com maior ou menor grau de demora e sofrimento, conforme a “habilidade” dos carrascos para o efeito contratados; nos matadouros municipais abatem-se animais, em condições tecnicamente aceitáveis, para aproveitamento alimentar da sua carne.
Como nascem as tradições?
Ao longo da História, as tradições bárbaras, hoje em extinção, sofreram uma evolução que dá que pensar.
Comum a todas são duas características: as tradições só recorrem à violência quando é possível o anonimato e as pessoas, integradas em multidão, perdem momentaneamente cons-ciência da sua responsabilidade individual; as tradições bárbaras têm vindo a transferir a sua sede de emoção e sangue de vítimas humanas para animais inocentes.
A conclusão possível é que, embora toda a gente concorde que matar é um crime, se ninguém nos conseguir identificar e se o morto for um bicho... o crime torna-se quase desculpável.
Segundo os especialistas, as tradições assentam em 4 fenómenos: isolamento (atraso em relação ao progresso do mundo), ignorância (baixo nível cultural), racismo (não aceitação de diferenças) e pobreza (impossibilidade de gozar prazeres caros).
Por detrás das tradições está também o interesse económico, já que a afluência de mirones, tanto a procissões religiosas e cortejos carnavalescos como a espectáculos à base de violência pura, é importante para o comércio local.
Violência contra pessoas
No circo romano as multidões deliravam com lutas de gladiadores que terminavam com a morte dos vencidos. Nas guerras ao longo dos séculos houve sempre duas alternativas: escravizar os vencidos, sempre que tal era economicamente vantajoso, ou não fazer prisioneiros, eliminando assim testemunhas e futuros inimigos.
O racismo já foi também causa de morte: nos E.U.A. foram linchados negros por “conspurcarem” mulheres brancas; na Alemanha nazi foram gaseados milhares de judeus por serem “seres inferiores” e ainda hoje são massacradas pessoas só porque a cor da sua pele é diferente.
Sombria tem sido a relação entre a religião e a morte: para aplacar a ira divina fizeram-se outrora sacrifícios humanos (imolar um filho no altar), mais tarde substituídos por animais (degolar um cordeiro). A violência religiosa atravessou os tempos, culminando na Inquisição, em que eram torturadas e queimadas pessoas por, destoando da maioria, abraçarem outra religião.
Em vários países vigora ainda a pena de morte, em alternativa à prisão perpétua. E mesmo os criminosos mais “bárbaros”, que violaram ou raptaram mulheres, são por vezes assassinados por presos teoricamente menos violentos.
Toda a gente afirma não ser racista, mas quando alguém é confrontado com uma situação que o toca pessoalmente é frequente explodir a repulsa: – Não sou racista, mas não quero que a minha filha case com um preto! – Não desejo a morte a ninguém, mas esse canalha não tem o direito de continuar a viver!
A violência nem sempre implica a morte: a circuncisão feminina (mutilação genital) é uma tradição a que são forçadas raparigas africanas. Uma tradição pascal na Guatemala leva grupos de estudantes embuçados a perseguir, capturar e brutalizar carteiristas e pequenos ladrões. E nas escolas e universidades surgem por vezes revoltantes casos de praxe académica que rondam o crime.
Mas também há tradições inofensivas, como a “tomatina”, em que jovens espanhóis de ambos os sexos se bombardeiam com tomates até ficarem todos mergulhados num banho vermelho... mas sem sangue.
Violência contra animais
Segundo uma estatística americana, quase todos os turistas que visitam Espanha assistem a uma tourada, mas cerca de 90% nunca mais quer ver outra. Como chegam sempre novos turistas o negócio continua rentável – e, segundo a mesma fonte, são mortos anualmente 35.000 touros.
Para além da festa brava subsistem ainda em Espanha outras tradições violentas, como obrigar um burro a passear o homem mais gordo da terra até o animal desfalecer (Villanueva de la Vera) ou lançar uma cabra da torre mais alta da igreja (Manganeses de la Polvorosa).
Em vários pontos do terceiro mundo multidões delirantes apostam para ver cães ou galos lutarem até à morte e, embora longe dos olhares de multidões, continuam a ser torturados animais em laboratórios, a bem da ciência e da beleza.
Exterminar animais como desporto é a essência da caça, tanto da legal, em que se mata para proveito próprio, como da furtiva, em que só se procura o lucro. Curiosamente há entre os caçadores muitos médicos, que parecem encarar este mortífero “desporto” como antídoto ao salvamento de vidas humanas. E mesmo no Portugal mais profundamente religioso se festeja ainda com inocência a matança do porco.
Perante a violência o turismo tem uma de duas reacções: os turistas “tradicionais” evitam deslocar-se a locais onde é frequente a violência contra animais e pessoas, enquanto alguns “não-tradicionais” procuram espectáculos cujo principal atractivo é a crueldade, rotulada de tradição.
Como acabam as tradições
As gerações mais jovens preferem dar largas às próprias capacidades a serem meros espectadores das “habilidades” alheias, pelo que os desportos radicais substituem velhas tradições em que a violência era praticada a coberto de celebrações religiosas ou folclóricas.
Respeito as tradições que não põem em risco a vida nem de homens nem de animais, mas não aceito que haja quem, sem a menor coerência, não abdique de actos bárbaros “tradicionais” mas recuse outras tradições, por já não lhe trazerem benefícios materiais. Igualmente incompreensíveis são a atitude dos governantes que, perante a oposição de grupos de cidadãos, evitam fazer cumprir à força a legislação, embora já tivessem criticado anteriores governos pelo mesmo laxismo... e o silêncio da Igreja que, procurando distanciar-se de questões polémicas, prefere calar-se e ficar bem com Deus e (salvo seja) com o Diabo.
Menos diplomática é a posição de um sacerdote, opositor declarado das touradas, que me provou ter o Papa Pio V decretado, em 1567, que “a exibição de animais e touros torturados é contrária à doutrina cristã, por serem divertimentos abjectos, mais próprios de demónios que de homens”. O decreto ordem parece estar esquecido, pois apesar da penalidade imposta – a excomunhão – nunca até hoje ter sido revogada, a igreja aceita a tourada sacrílega como ponto alto das celebrações em honra de uma Santa.
O mesmo religioso relatou-me um seu sonho relacionado com a polémica de Barrancos:
“No momento em que o matador espetava a espada no coração do touro, um helicóptero que filmava a festa de Nª Srª da Conceição despenhou-se sobre a praça. Felizmente a tripulação nada sofreu, mas os organizadores foram esmagados e imagem da santa esmigalhada”.
Deus queira que tão trágico castigo nunca se concretize!
Estou certo de que esta e outras cruéis tradições acabarão um dia, quando a população local, descontente com o incumprimento de alguma lei cujo favor lhe interesse, se sentir forçada a exigir o respeito integral pela legislação vigente, sem qualquer excepção. É assim, por súbita reviravolta dos próprios interessados, que as tradições mais desumanas têm vindo a desaparecer.
Oxalá tal continue a suceder onde ainda se faz da morte um espectáculo para diversão de consumidores de violência e sangue.
* Professor
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