quinta set 09, 2004 11:14 pm
boa noite
Presentemente, entre todas as entidades reguladoras da canicultura a nível mundial, o número de raça caninas reconhecidas deverá rondar as 400. Destas, um número limitadíssimo, será independente da influência mais ou menos intensa do Homem. O mesmo que dizer que a esmagadora maioria das raças caninas existentes devem-no à acção e influência humana.
Desde cedo o cão demonstrou aptidões e comportamentos únicos comparativamente aos restantes animais, para com o Homem. E, logicamente, procuramos retirar vantagem e benefícios dessa interacção, criando, melhorando, apurando ao longo de inúmeras gerações através de uma “criação” selectiva, cães que se adaptassem da melhor maneira ao desempenho de variadas tarefas como a caça, o pastoreio, para guardar, para defesa, para o combate.
Foi igualmente para uma melhor adaptação de determinados tipos de cães a certas tarefas, que surge a necessidade das amputações de cauda ou orelhas. Não como forma de facilitar o cuidado e trato do dono com o animal em questão, mas essencialmente visando auxiliar o desempenho do cão no papel que lhe competia e até mesmo, por questões de saúde do próprio animal, uma vez que o corte prevenia em certas situações o aparecimento de potenciais problemas frequentes no animal no desenrolar do trabalho a que este estava destinado.
A partir de uma determinada altura, numa época em que grande parte das raças já se encontrava mais ou menos estabilizada na sua tipicidade a um nível geral, que surgem os primeiros standards, descrevendo o que se idealizava como o “protótipo” da raça, descrevendo exaustivamente as características desejáveis e as faltas indesejáveis da mesma. Logicamente o standard das raças nas quais, por motivos de “trabalho”, se praticava a amputação, passaram a prever e a considerar como desejável essa mesma prática, fazendo com que o corte estivesse a partir de então, não inerente à raça por questões práticas mas, também, por questões estéticas e de tipicidade.
O primeiro país a abolir a amputação foi o Reino Unido no virar do século XIX/XX. Essencialmente as razões com que se prendeu essa abolição tinham que ver com os cães de luta (modalidade muito em voga na altura, mesmo que abolida em meados do séc. XIX e, desde então, na clandestinidade), uma vez que era, basicamente aos cães utilizados nestes “espectáculos” que se amputavam as orelhas e, nalguns casos as caudas, diminuindo assim as áreas de potencial presa para o seu oponente.
Contudo, em outros países a amputação permaneceu permitida e, como atrás referi, cada vez mais intimamente ligada à vertente estética da raça com o crescente interesse de exposições de beleza da altura.
Hoje em dia, poucos serão os cães dessas raças de trabalho (e mesmo de quase todas as outras) que são ainda utilizados exclusivamente para executarem a tarefa para a qual foram (enquanto raça) inicialmente concebidos. Tornaram-se assim em cães basicamente de companhia, quer como mero animal de estimação, quer como animal de exibição. Mas, no caso dos cães de raça, qualquer que seja a finalidade porque se pretende um exemplar de determinada raça, a verdade é que a estética e aparência (para além de todas as outras características típicas) têm um peso quase preponderante na nossa opção. E aqui é que se encontra na minha opinião o ponto fulcral de toda esta questão:
Se a aparência actual das raças tem como base a sua história colectiva, e se a amputação (quando existente) partilha essas mesmas bases históricas influenciado não só, mas também a sua aparência exterior, como consequência disso defendo que, sempre que prevista no standard, a amputação deveria ser permitida e mantida.
É certo que as razões “práticas”, se assim lhes quisermos chamar, que deram origem a essa prática já não representam um factor preponderante mas, a verdade, é que estão lá nas raízes históricas. E, na minha opinião, querer abolir o corte de orelhas a essas mesmas raças é “apagar” uma parte da sua história. É desvirtuar as suas origens e a própria raça na actualidade.
O Dogue Alemão, o Rottweiler, o Dobermann, o Mastim Napolitano, entre outras, para todas estas raças houve motivos práticos e, actualmente históricos, que não a simples estética, por detrás das razões que explicam e justificam o porquê da amputação. Se somos nós responsáveis pelo aparecimento, evolução e desenvolvimento dessas raças (o que inclui também a amputação), também é verdade que somos nós os responsáveis pelo facto de hoje esses cães já não desempenharem as funções para as quais originalmente os criamos. Mas, historicamente, as razões permanecem. Portanto deveremos agora nós voltar atrás? Penso que não. Quanto a mim, penso que abolir o corte das orelhas e da cauda ao Mastim Napolitano, por exemplo, seria o mesmo que tentar voltar a alterar a raça para que este perdesse as características pregas de pele da sua cabeça e focinho.
Muitos dos standards já se alteraram entretanto de forma a abolir a amputação. No entanto gostaria de colocar uma pergunta que já neste tópico fiz e que, até hoje, ainda ninguém respondeu: Foram esses standards alterados devido a se ter concluído que não existem quaisquer vantagens, antes pelo contrário, em amputar orelhas e/ou caudas, ou tal alteração de deveu a que os standards não caíssem em contradição com a legislação vigente?
É que, segundo creio, os standards só foram alterados quando as legislações dos países de origem das raças afectadas proibiram a amputação. Se houvessem outras razões que não esta, não teriam sido os standards modificados anteriormente a essas alterações de lei?
Ontem coloquei aqui um post no qual fazia referência entre tomadas de posição por parte de algumas pessoas que tipicamente defende com unhas e dentes a proibição da amputação/esterilização de animais e a sua opinião relativamente ao aborto. E a razão pela qual a fiz foi a seguinte:
Apesar de pessoalmente ser incondicionalmente contra o aborto em situações que não as actualmente previstas na lei, no referendo acerca da legalização da interrupção voluntária da gravidez apoiei o ‘Sim’. Contraditório?!... Talvez…
É que acima da questão do aborto prende-se outra de maior importância na minha óptica – a dignidade da mulher como ser humano e os riscos inerentes à prática clandestina do aborto. Como tal, e como diz o velho ditado, “não adianta tapar o sol com a peneira”, é antes de mais inútil e contraproducente tentarmos escamotear a realidade, que são as centenas de abortos clandestinos nas mais míseras e indignas condições que diariamente se efectuam por este país fora. Condições deploráveis, irresponsáveis, amadoras e com riscos graves que poderão levar à incapacitação definitiva da mulher em gerar filhos e, até mesmo, à morte.
Na minha perspectiva, enquanto se mantiver o aborto ilegal estas situações deploráveis continuarão a existir e muita gente continuará a fazer “rios de dinheiro” com o sofrimento e angustia alheia. Independentemente de ser absolutamente contra na minha consciência à pratica do aborto, sou, ao mesmo tempo, consciente que é impossível erradicar por completo a interrupção voluntária da gravidez. Então, há que retirar este acto do quadro de ilegalidade e de todas as situações inerentes a essa sua marginalidade e proporcionar as condições de saúde e segurança exigíveis a esta situação. É por esta razão que apoio e apoiarei a legalização (com as devidas limitações temporais) do aborto, mesmo sendo uma prática que vai contra os meus princípios.
A meu ver, a mesma razão aplica-se à amputação de orelhas e caudas. A ilegalidade é que fará, o sofrimento animal.
Cumprimentos a todos
Bullie & Gaspar