A propósito de criadores

Este é o fórum dedicado exclusivamente ao melhor amigo do homem! Troque ideias e tire dúvidas sobre o cão.

Moderador: mcerqueira

Responder
nel
Membro Veterano
Mensagens: 3778
Registado: terça set 24, 2002 8:18 am
Localização: Três whippets
Contacto:

quinta out 03, 2002 6:35 pm

Olá a todos

Quando me inscrevi neste fórum foi com o único propósito de trocar impressões sobre cães em geral e de preferência sobre a raça de que gosto, o Whippet. Trocar experiências, contar histórias, testar conhecimentos adquiridos, etc. Estas mensagens, muitas delas, são uma espécie de “cartas de amor” que endereçamos aos nossos amigos animais, não é? Muitas vezes não passam disso. Mas outras têm um forte conteúdo pedagógico e nestes escassos dias de participação, de facto, já aprendi muito.

Antes de intervir no fórum, tentei ler tudo desde o início, como já referi no primeiro post, não só para evitar colocar questões já tratadas, como também para me ambientar. Mas a tentação de ler tudo exaustivamente levou-me à desistência, pois nem daqui por dois ou três meses teria a tarefa concluída. Quer dizer, fiquei com a lição a meio e mal estudada.

De qualquer modo, apercebi-me de imediato que a constituição do fórum é bastante heterogénea. Sem entrar em consideração com outros aspectos (de carácter ideológico, etc.). Dum lado estão as pessoas como eu, pouco experientes, cujos conhecimentos derivam da vivência tida com os seus animais e pouco mais; do outro encontram-se os criadores, estes denotando uma larga experiência... e não só.

Fiquei a saber que existem “criadores” por um lado e por outro os “produtores”, ou seja, os comerciantes de animais. Os primeiros mais levados pela paixão por uma determinada raça e pela sua preservação dentro de determinados princípios éticos; os segundos essencialmente motivados pelo lucro.

Quando numa das minhas intervenções referi que os meus whippets me tinham sido oferecidos, houve assim como que um silêncio na “sala” acompanhado de um certo burburinho. Ah, como é possível? Olha que esquisito! Mistério...
De tal modo fiquei preocupado com esta (suposta) reacção, que resolvi rever os depoimentos anteriores tratados no fórum, especialmente os respeitantes a criadores, pois tinha-me apercebido que ao passar os olhos em diagonal aquando da primeira leitura, havia muita informação sobre o assunto.
Pensava eu entretanto: “Será que o meu amigo não é criador? Comerciante também não é... Quem sou eu então para merecer quão valiosa dádiva? Ainda por cima, logo três whippets...”

Já li quase tudo (o essencial) sobre esta matéria e valeu a pena, porque a minha opinião sobre o assunto alterou-se nalguns aspectos.
O que paguei deve corresponder aproximadamente às despesas tidas até aos cachorros virem para minha posse (despesas de alimentação, veterinário, registo, vacinas, etc., etc.), mas sem quaisquer acréscimos de lucro a favor do criador.
Por outro lado, o juizo que eu tinha (e ainda tenho) do preço de um cão de raça, isto sem entrar em linha de conta com as diferentes raças, muito provavelmente, nada tem a ver com a realidade. Por outras palavras, penso que o que paguei é muito pouco comparado com o valor que eventualmente se pratica. E ainda continuo a pensar assim. Daí o ter considerado a “transação” mais uma oferta do que uma compra. Mas este aspecto, realmente, não creio que tenha grande importância.

Considero mais relevante o que se segue. Antes de ficar com os cães tive da parte do criador verdadeiras sessões de esclarecimento sobre a importância da preservação da raça, sobre a importância dos concursos, o cuidado a ter nos cruzamentos e muitos outros aspectos que na altura, confesso, me entraram por um ouvido e saíram pelo outro (estupidez minha). Como diz SeaLords numa das intervenções, este comportamento do comprador é típico.
Apreendi apenas o essencial, especialmente no que respeita às características da raça, forma de lidar com ela e a outros aspectos primários mais ligados à manutenção dos bichos.
Pressionado por ele, ainda fui a um concurso, a que acedi mais por amabilidade, mas, como já referi numa das minhas intervenções, considerei essas sessões uma espécie de feira de vaidades, mais gratificante para os donos do que para os bichos.
Esse juizo - não dar importância à vertente útil das exposições, por exemplo - deveu-se, reconheço, a ignorância da minha parte, pese embora o facto de já antes ter sido alertado para isso e para muito mais.
Nas suas linhas gerais, julgo que o criador dos meus whippets corresponde às especificações que SeaLords (o membro do fórum que porventura mais se tem batido por clarificar estas questões) indicou numa das suas intervenções.
Aliás, não apenas os seus depoimentos como também os de VascoV, Paulo C e outros (desculpem não mencionar todos), contribuiram muito para hoje ter um conceito muito mais correcto daquilo que é o trabalho e a postura de um criador.
Pela vossa contribuição pedagógica, muito obrigado.
Pela consideração que o criador em causa me merece, senti-me na obrigação de fazer este esclarecimento.

Vai agora uma primeira questão: não deveria existir um mecanismo, instituição, associação ou seja o que for (se é que não existe já) de reconhecimento e de legitimação do estatuto de criador? Basta o curriculum ou reputação?

Há ainda uma questão de outra índole que gostaria de colocar-vos (a quem quiser responder e se julgarem que esta e a anterior têm interesse para o fórum).
Da parte do criador que se preza, existe o CULTO (não a mera criação) do cão de raça. Esta apologia do cão de raça não terá uma influência perversa no gosto do público?
Por outras palavras, por exemplo o abandono dos animais, na sua maioria SRD, não se deverá em parte ao facto de serem simplesmente rafeiros e preteridos em relação aos de raça?
E isso não terá igualmente um efeito negativo na sua adopção?

Peço desculpa pelo extenso relambório. Quando me iniciei no fórum, nunca pensei vir a fazer este tipo de intervenções.

Cordiais saudações
Manuel Cabral
SeaLords
Membro Veterano
Mensagens: 3417
Registado: segunda jan 01, 2001 12:00 am
Localização: Bobtail-aholic

quinta out 03, 2002 8:56 pm

Olá nel,

Obrigada, pela parte que me toca. Realmente eu tenho-me batido muito pelo reconhecimento do papel do criador, que é uma figura geralmente mal vista, quer pelo público em geral, quer por pessoas que até tinham a obrigação de tratar os criadores de outra maneira - falo dos veterinários.

O que é certo é que o termo de "criador" cobre uma imensidão de casos. E o termo de criador tem montes de significados - desde o mais "laxista" (criador é o proprietário da cadela no momento do parto, como reza o Regulamento do LOP) até ao mais restritivo (que é o meu - e que engloba um rol muito largo de exigências, quer em termos de qualidade dos cães quer em termos de postura e de ética). Desta forma, enquanto não houver um critério objectivo para "classificar" criadores, continuará a ficar tudo "à molhada". Sinceramente, acho muito difícil haver um estatuto de criador nos tempos mais próximos: o CPC não está interessado, os Clubes (que poderiam ter realmente um papel mais interventivo) estão muitas vezes dominados por interesses particulares.

Resta a educação das pessoas. Como eu tenho tentado fazer ver, uma actividade comercial só se mantém enquanto tiver lucro. As pessoas, ao comprarem animais a alguém, e se esse alguém está apenas interessado no negócio, estão a permitir a continuidade da actividade. Devem por isso fazer um bom trabalho de casa para não ficarem com um peso na consciência. E é tão simples descobrir quem é que encara os cães como negócio ... Os criadores, os verdadeiros, estão na criação por paixão à raça, e portanto continuarão, quer vendam os cães quer não (que prejuizos têm sempre - eu que o diga), em último caso a um ritmo mais lento, a criar a sua raça, de modo a que a geração vindoura tenha hipótese de usufruir deste Património da Humanidade que são todas as raças de cães. O "seu" criador exemplifica este grupo: está por amor à raça e prefere dar os cachorros a alguém de confiança, que os saiba tratar como eles merecem, que vendê-los a peso de ouro, quiça a alguém que apenas os quer usar como símbolo de status social - se ao menos pudessem passear com a etiqueta do preço pendurada na coleira ...

E vamos à sua segunda pergunta: se a apologia do cão de raça não terá uma influência preversa no gosto do público? Eu acho que o gosto do público é muito pouco influenciado pelos criadores. O boom do cão de raça deve ser encontrado nos media (é tão giro ter um cão igualzinho ao da Sofia Alves, ou é fixe ter um cão igual àquele que degolou 10 pessoas) - e daí as modas. Acho que há mais relação do tipo "há muita gente a querer esta raça de cão, vamos criá-la" (e assim aparecem os criadores de vão de escada e os puros comerciantes) do que " eu estou a criar esta raça, vamos triplicar a criação e vamos vender tudo".

Quanto ao abandono, não acredito que se abandonem cães simplesmente por serem rafeiros. Quem abandona rafeiros abandona cães de raça. Um cão é um cão - e os laços que se estabelecem entre as pessoas e os cães têm muito pouco a ver com genealogias. Acontece que os rafeiros são quase predestinados desde o princípio:
- nascem por falta de cuidado dos donos ou devido a abandono
- por esse motivo, são dados à pressa sem muito cuidado na escolha dos donos
- as pessoas que os levam para casa ou quiseram ser simpáticas para o vizinho, ou acharam piada à bolinha de pêlos. Mas interiormente não se comprometeram realmente com o bicho. E à menor contrariedade, o ciclo repete-se.

Se os cães de raça são menos abandonados é porque, na generalidade dos casos, são comprados. E a compra, envolvendo dinheiro, obriga a uma outra reflexão. Afinal, ninguém gosta de deitar dinheiro fora pela janela. Ao comprar um cão de raça, já se sabe com que tamanho vai ficar e quais as suas necessidades em termos de exercício, "cabeleireiro", etc - não há surpresas e, portanto, não há desculpas.

Nos países mais avançados, o "culto" do cão de raça levou à quase extinção do rafeiro - por "morte" natural, por desaparecimento das condições que levam à reprodução descontrolada dos animais. Nos países nórdicos, praticamente não há rafeiros, eventualmente haverá mestiços por algum descuido - mas todos com donos responsáveis. Na Finlândia, que é o paradigma desta situação, 90% (NOVENTA POR CENTO) de TODOS os cães que constituem a população canina nesse país são cães registados no livro de origens - ou seja, cães de raça, purinhos.

Por cá, as pessoas pensam "pequenino", como em tudo, e o cão de raça muitas vezes é adquirido por questões de status. Estas pessoas não deviam sequer ter cão - porque são as que potencialmente vão abandonar este animal mal passe a moda, ou à mais pequena contrariedade.

O problema dos abandonos, tal como o das adopções, não está no animal, está nas pessoas.
"Quando o sábio aponta para a Lua, o idiota olha para o dedo"  (provérbio chinês)
Responder

Voltar para “Cães”